Quem vem e atravessa o rio do Doclisboa

Um percurso, entre muitos, por um programa competitivo atento ao passado e ao presente, à história e ao conflito, à cidade e às terras; uma viagem por olhares clássicos e modernos que coabitam num mesmo certame. É (também) isto a competição do Doclisboa 2018.

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, um filme clássico num festival que tantas vezes aposta no novo e na vanguarda, é um dos melhores do concurso

O Doclisboa propõe, num dos seus programas paralelos de 2018, acompanhar cinematograficamente o percurso do Eufrates, um dos grandes rios da Mesopotâmia, atravessando e miscigenando civilizações e culturas. É a manifestação física da aposta de sempre do certame nos “vasos comunicantes”: seguir um rio onde tudo passa, tudo se mistura, onde tudo ecoa e ressoa e faz ligação com tudo o resto. Tudo, isto é, não apenas nessa secção nem na geografia do rio asiático; antes em todo um programa onde temas e filmes transportam ecos de hoje e de ontem, do programa 2018 e das presenças de anos anteriores, partindo sempre do local para o universal.

O ponto zero, a Ariadne que começa a desfiar o novelo, foi o filme de abertura, The Waldheim Waltz. O olhar da austríaca Ruth Beckermann sobre a “pré-história” da ascensão ao poder da direita conservadora não é apenas relevante para os nossos dias de fake news; é também uma lição de história. Em 1986, quando a candidatura presidencial de Kurt Waldheim acordou a Áustria para o seu passado escondido, Hugo Portisch, decano do jornalismo austríaco, disse, na televisão, para que todos o ouvissem, que a Áustria não tinha feito o seu acto de contrição do período nazi; as consequências desse “esquecimento” começaram a vir ao de cima em 1986 e mexem hoje com os alicerces das democracias ocidentais. A presença do filme de Beckermann sinaliza o modo como o Doclisboa sublinha, hoje, uma forma de ver o mundo e de o traduzir cinematograficamente que não existe em isolamento nem em reclusão; que se inscreve como parte de tudo o que o rodeia como um blockchain em constante actualização.

O olhar de The Waldheim Waltz sobre a viragem à direita ecoa no último panfleto de Michael Moore sobre a eleição de Donald Trump, Fahrenheit 11/9 (ante-estreia, fora de concurso), e em investigações gémeas sobre as sequelas da Segunda Guerra Mundial exibidas na competição. Greetings from Free Forests, do americano Ian Soroka, é um mergulho na história esquecida dos Balcãs, visitando os bosques da Eslovénia onde a resistência jugoslava, os partisans, combateu durante a guerra a ocupação nazi. Hoje palco de monumentos e memoriais pouco visitados, de grutas e pedreiras, dos arquivos da Cinemateca da Eslovénia, de caçadores e madeireiros, estes bosques são o centro de uma absorvente viagem ao coração da memória e do esquecimento, e de uma reflexão sobre o peso da história na construção de uma identidade. (O montenegrino Ivan Salatic explora, de maneira mais opaca e menos conseguida, essa ligação à paisagem na média We Are the Sons of Your Rocks, inspirada num outro caso da Segunda Guerra Mundial.)

Em paralelo, Extinção, da portuguesa Salomé Lamas, vai a uma das ex-repúblicas socialistas soviéticas reflectir sobre um dos 37 conflitos fronteiriços nas periferias da Rússia de Putin. Reconhecemos a atracção da realizadora pelo abismo dos limbos, tanto filosóficos como físicos, já explorados em Terra de Ninguém ou Eldorado XXI — “terras de ninguém” que permitem questionar o que significa a identidade e a verdade hoje. Aqui, percorremos as fronteiras de um território dividido, entre uma grande Moldávia pró-europeia e uma pequena Transnístria pró-russa que o mundo não reconhece, apanhado na desintegração e no fechamento sobre si mesmo de um urso russo que (ao contrário do que Solzhenitsyn prescrevia) não cortou as amarras às periferias às quais não conseguia chegar.

Esta Moldávia/Transnístria remete para a meditação das Letters to Max de Éric Baudelaire (premiado em 2014), sobre o “estado-limbo” da Abecázia — um dos três únicos estados a reconhecer a Transnístria, e que aparece também “representado” na programação pela curta de Otto Lakoba Monologue, variação mais ou menos escolar sobre o Til Madness Do Us Part de Wang Bing ambientada num hospital psiquiátrico da Abecázia.

O exemplo máximo do limbo, contudo, é Resurrection, esmagadora curta ensaística que reflecte sobre a natureza do exílio. O exílio é o do próprio realizador, Orwa al-Mokdad, sírio bloqueado no Líbano, impedido de regressar a casa a um país desintegrado e impedido de sair de um território que não é o seu. São 18 minutos de angustiada e angustiante desorientação onde documentário e meta-ficção se cruzam de modos perturbantes para descrever o nada, a inexistência, a invisibilidade.

É, de outro modo, também sobre a invisibilidade do limbo que fala Diego Governatori: da invisibilidade do síndroma de Asperger de Aurélien Deschamps, manifestado na palavra obsessiva e recorrente sobre os próprios limites da obsessão do actor e cineasta, que Governatori filma em confronto com as festas de San Fermín em Pamplona em Quelle Folie. Acompanhando Aurélien primeiro pelos arredores e depois pela cidade no dia da largada dos touros, entre o silêncio e o ruído, Quelle Folie torna-se numa espécie de mergulho profundo numa possível filosofia do autismo, sobre-conceptualizado mas expressivo do modo como nos encerramos nas nossas próprias cabeças para ignorar o ruído externo.

Prolonga-se na vampirização de Tom Gu Guotang por Adon Wu Yaodong em Goodnight & Goodbye, misto de memorial a um amigo perdido e meditação sobre o pacto injusto entre documentarista e documentado, o limbo entre distância e proximidade. Depois de um longo período sem ver o seu antigo amigo (que filmara anos antes), o reencontro de Wu e Tom é desastre de automóvel do qual não se consegue desviar o olho, confissão de voyeurismo de uma queda no inferno mas também tentativa sincera de ajustar contas com a consciência.

Depois há os limbos urbanos, manifestados nos “três andamentos” de Avenida Almirante Reis em Três Andamentos de Renata Sancho, inspirado pelo estudo do geógrafo Aquilino Ribeiro Machado: uma artéria que se percorre antes do 25 de Abril, durante a revolução de 1974 e nos nossos dias em busca dos sinais de mudança e de transformação, da ideia da cidade viva em constante movimento, deixando os habitantes e os espaços falar por si mesmos. (O filme de Sancho ressoa com Alis Ubbo, de Paulo Abreu, sobre a “gentrificação” e “turistificação” da Lisboa contemporânea, que apenas poderá ser descoberto na projecção oficial em sala.) O problema específico de Avenida Almirante Reis é haver presente a mais e passado a menos: a escassez do material de arquivo desequilibra um projecto que tem mais para dar — embora a ausência de contexto e narração também não ajude.

Nesse respeito, é um filme que ressoa com outros títulos portugueses na selecção, como Il Sogno mio d’Amore de Nathalie Mansoux e Miguel Moraes Cabral (o quotidiano do Conservatório de Música de Lisboa) e Antecâmara de Jorge Cramez (o quotidiano de um plateau de cinema visto pela câmara do video assist, completada por uma outra longa documental fora de concurso, Actos de Cinema). A opção de deixar as imagens falar por si, sem explicação ou contexto, exige uma atenção redobrada ao agenciamento de planos e eventos para que o filme exista para lá da mera colagem de episódios ou situações.

Ricardo Moreira está-lhe obsessivamente atento em Cidade Marconi, olhar conceptualizado sobre um terreno baldio em Alfragide cujo formalismo simultaneamente escolar e lúdico desintegra o risco de populismo do fait-divers que lhe está no centro. A “cidade Marconi” no título, vindo da localização deste lote abandonado e nunca edificado (na Avenida Marconi), é um terreno fantasma para o qual se sucederam planos de urbanização nunca concretizados ao longo de quinze anos enquanto os fundos de investimento iam sendo esvaziados. A inteligência formal de Cidade Marconi, contudo, tomba no exercício experimental e num problema de duração, sem atingir o equilíbrio temporal ideal entre conceito e concretização, forma e função. 

Falávamos, no início deste texto, de rio, e é a ele que voltamos — é no Tejo que encontramos Albertino Lobo, o pescador de Vila Franca de Xira que é personagem de corpo inteiro, filmada à altura de homem, por Leonor Teles em Terra Franca. Estamos longe da Balada de um Batráquio que lançou a realizadora para o reconhecimento; este olhar sobre um ano na vida de Albertino e da sua família é um documentário discreto e comovente, sobre o quotidiano, que evoca Ford.

É um filme clássico num festival que tantas vezes aposta no novo e na vanguarda; a sua presença a concurso é o reconhecimento de que o grande cinema não precisa de estar a inventar permanentemente. Basta estar atento e saber contar. É mais difícil do que parece, e Leonor Teles consegue-o — num filme que dialoga com muito do que vemos em 2018 no Doclisboa, mas que também se ergue desde já como um dos seus melhores títulos a concurso.

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