A Europa ainda precisa de Merkel. E tem lugar para ela

Numa larga maioria de capitais da União, a ideia de ficar sem ela no comando de um país com o poder e a influência da Alemanha ainda não é vista com tranquilidade.

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1. As opiniões dividem-se. A chanceler entrou definitivamente no seu ocaso político, preparando-se para abandonar a cena? Ou a sua capacidade de resistência vai, mais uma vez, desiludir aqueles que têm mais pressa em vê-la sair de cena? Entre estes, naturalmente, estão os seus potenciais sucessores da CDU, que querem uma oportunidade, depois do seu longo reinado. São vários. Nenhum se perfila como favorito. Sabemos que, depois de um líder forte, a transição é sempre um processo longo e complicado. Angela Merkel tem contra si a “maldição do quarto mandato”, que assombrou os últimos anos de Adenauer e de Kohl. Esse é um problema interno da Alemanha, que apenas diz respeito ao resto da Europa porque, numa larga maioria de capitais da União, a ideia de ficar sem ela no comando de um país com o poder e a influência da Alemanha ainda não é vista com tranquilidade. Este sentimento tanto se manifesta à direita como à esquerda, entre os partidos e os governos pró-europeus. É revelador do que Merkel representou ao longo da longa crise existencial que a Europa atravessou nos últimos dez anos e da qual ainda não saiu. Merkel nem sempre fez aquilo que teria sido preciso. Hesitou algumas vezes. Tomou decisões que, pelo peso da Alemanha, afectaram duramente um número significativo de cidadãos europeus, sobretudo nos países mais vulneráveis do Sul. Foi algumas vezes mais “alemã” do que “europeia”, sobretudo nos anos iniciais da crise, quando a Alemanha teve o seu “momento unilateral”. Não teve a coragem suficiente de explicar aos alemães que tudo aquilo que pagavam para “resgatar” os países do Sul lhes seria devolvido a dobrar. Não há líderes perfeitos nem infalíveis em democracia. Mas dois factores conjugados transformaram-na numa figura indispensável para o futuro da Europa, entre aqueles que ainda querem que a Europa tenha futuro: a sua convicção profunda de que a União é um bem inestimável, incluindo para o seu país, apesar da força da sua economia e do seu peso político; o seu apego aos valores europeus da democracia, da liberdade, do respeito pelos outros e de um mundo que tem de assentar em regras, mais do que na relação de forças que apenas favorece os mais fortes. Raramente vacila na defesa destes valores — talvez porque viveu até aos 34 anos sem ter direito à liberdade e sabe quanto isso é o mais importante. Alguns dos seus críticos, sobretudo à esquerda, dizem que ela seria sempre decisiva pelo simples facto de ser chanceler da Alemanha. Pode ser verdade. Mas basta olhar para o debate interno que se trava hoje entre as elites alemãs para perceber que a escolha não é indiferente, nem os alemães vêem todos a Europa da mesma maneira. Nem, muito menos, como a viam antigamente, antes do fim da Guerra Fria e da unificação — como uma segunda pele, que permitiu à Alemanha regressar ao concerto das nações civilizadas, consolidar a sua democracia e operar um novo milagre económico. Hoje, os termos do debate já não são esses, embora a fase do go it alone já tenha sido em grande medida ultrapassada. A turbulência internacional, o distanciamento americano e a emergência de grandes potências que não comungam dos valores ocidentais voltaram a dar aos alemães uma perspectiva positiva sobre a indispensabilidade da Europa para a defesa dos seus interesses nacionais. Merkel aguentou o barco quando as coisas não eram assim tão claras.

2. Entretanto, foi durante os seus mandatos que a paisagem política alemã e europeia se transformou aceleradamente. Na Alemanha, o sistema de três partidos deu lugar a outro, com seis, incluindo forças de ideologia extremista, alterando os equilíbrios políticos internos e pondo cobro à tradicional estabilidade política. Primeiro à esquerda, quando as consequências da unificação puseram o SPD à prova e abriram espaço para uma ala radical, que acabaria por juntar forças com o que restava dos comunistas da antiga RDA e fundar o Die Linke. Os Verdes já existiam desde os anos 1980, mas converteram-se num partido do sistema nos anos 1990, aberto e profundamente europeísta. Os Liberais deixaram o seu papel de partido-charneira e continuam à procura de um lugar no novo sistema político — à direita da CDU/CSU? Não é fácil, até porque, entretanto, a mais profunda das transformações do espectro político nasceu na extrema-direita do leque partidário, de tal forma que ocupa hoje o lugar de maior partido da oposição no Bundestag. Merkel justificou muitas vezes as suas decisões demasiado “alemãs”, quando a crise financeira desencadeou a crise da dívida e a crise do euro, com a necessidade de não abrir espaço para a emergência de um partido de extrema-direita no seu país. Falhou o objectivo. Como numa maioria de países da União Europeia, é a entrada em cena de partidos populistas e nacionalistas que cria as maiores dificuldades para os partidos do centro, a partir dos quais a integração europeia foi construída. É essa nova realidade que hoje ameaça a Europa, exigindo lideranças capazes de contrariar os riscos crescentes de fragmentação interna e de enfrentar, ao mesmo tempo, um mundo cada vez mais hostil. Sem a chanceler, esse esforço será mais difícil. Sem a chanceler liberta dos seus constrangimentos internos será ainda mais difícil.

3. Há uma tese que circula entre alguns governos europeus e que faria sentido para a Alemanha e para a Europa: oferecer-lhe o cargo de presidente do Conselho Europeu, depois das eleições para o PE, em Maio de 2019. Algumas vozes do Partido Popular Europeu (PPE, centro-direita) chegaram a falar à boca pequena na sua eventual candidatura à presidência da Comissão. Não faria sentido. O poder político da União está hoje concentrado no Conselho Europeu, no qual têm assento os líderes dos 28 países da União. A Comissão continua a ser um órgão importante para fazer cumprir as regras e para tentar encontrar soluções que vão ao encontro do interesse do conjunto e não apenas de uma parte. O seu poder político é diminuto, por mais que o actual presidente, Jean-Claude Juncker, tenha tentado “politizá-la” com o objectivo de reforçar a sua autoridade. A Europa precisa de condução política no seu órgão de liderança por excelência. Merkel teria o prestígio e a autoridade indispensáveis — dentro e fora da União Europeia.

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