Eis (finalmente) o genoma da sardinha. E em duplicado

Dois trabalhos independentes realizados com investigadores portugueses de diferentes instituições divulgaram esta semana o genoma da sardinha. É o mesmo genoma da mesma espécie com o mesmo objectivo: disponibilizar uma ferramenta para proteger a sardinha.

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Enric Vives-Rubio

Não há fome que não dê em fartura. Nos últimos anos temos assistido à publicação de genomas de várias espécies animais (incluindo o popular salmão e bacalhau), mas até agora da sardinha não tínhamos nada. Esta semana, o genoma da sardinha foi finalmente divulgado não uma, mas duas vezes, e por duas equipas de investigadores que integram diferentes instituições portuguesas. Uma equipa internacional coordenada pelo Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar), da Universidade do Porto, publicou “um primeiro esboço” do genoma da Sardina pilchardus, a vulgar e popular sardinha europeia, na revista de acesso aberto Genes. E um outro grupo de investigadores do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve e do Cibio (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos) da Universidade do Porto também apresentou esta sexta-feira, numa base de dados de acesso aberto, os resultados do projecto.

Um consórcio internacional coordenado pelo Ciimar e com a participação de uma investigadora do Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA) investigou os genes da sardinha para esclarecer alguns dos seus traços distintivos, como a capacidade que esta espécie tem em biossintetizar determinados ácidos gordos polinsaturados. O trabalho foi concluído recentemente e foi submetido para publicação na revista Genes, tendo sido aceite para publicação a 10 de Setembro e publicado esta semana. Filipe Castro, investigador do Ciimar, começa por referir que estamos perante “o primeiro esboço do genoma da sardinha”. Sim, é verdade. Os avanços da genética e da tecnologia que permitiram revelar tantos genomas de variadas espécies ainda não tinham chegado a explorar os segredos da popular sardinha.

“Não sei explicar porquê, é um paradoxo. Já conhecemos o genoma de muitos outros animais e peixes, nomeadamente outras espécies que podem ser consideradas icónicas como o salmão e o bacalhau, mas a sardinha não teve essa atenção”, admite o investigador. Até agora. Aqui não temos ainda a versão completa, assume Filipe Castro: “Para sermos rigorosos, cerca de 85% do genoma está representado neste trabalho. O ponto de partida era que conhecíamos zero e agora conhecemos 85%.” E o mais importante aqui é que este primeiro passo pode já ser decisivo para a conservação desta espécie e para traçar estratégias eficazes para a produção de sardinha em aquacultura.

Este esboço já permite fazer “inferências de carácter biológico”, garante. A partir daqui será mais fácil conhecer a biologia da sardinha e protegê-la encontrando, entre outras soluções, formas de a explorar com mais sustentabilidade. Um dos principais alvos da investigação foi estudar capacidade que as sardinhas têm de biossintetizar ácidos gordos de cadeia longa, conhecidos como ómega-3, que são essenciais para a saúde humana. Os cientistas seleccionaram esta via metabólica responsável pela produção de ácidos gordos como “prova de princípio” e caracterizaram os genes-chave (um conjunto de enzimas) com funções bem definidas neste processo.

No caso das sardinhas (e apesar de ser um peixe rico em ómega-3), esta capacidade de produção endógena de ácidos gordos está diminuída, segundo concluíram. “Estes peixes conseguem fazer parte mas não conseguem fazer tudo. E isso é relevante por si só, para conhecermos a espécie, mas há uma consequência prática: é um conhecimento essencial para manejar a espécie, para conseguirmos fazê-la crescer.” Com este estudo, a “receita” do ponto de vista dos ómega-3 para uma eventual ração dirigida para sardinhas está feita. “O ponto mais interessante aqui é que, ao gerarmos este esboço do genoma, conseguimos utilizá-lo para conhecer a biologia, nomeadamente a biologia nutricional.” E outras equipas podem utilizar estes dados para explorar outros aspectos da sardinha.

Rute da Fonseca, investigadora no Museu de História Natural da Dinamarca e no Departamento de Biologia da Universidade de Copenhaga que também liderou este trabalho, avança já como uma nova frente de trabalho que não está associada à dieta da sardinha. “Este trabalho é um exemplo claro do poder que abordagens genómicas de baixo custo têm na monotorização de recursos biológicos. Este recurso tecnológico, um primeiro olhar global sobre o genoma da sardinha, permitiu-nos já iniciar um trabalho em que estamos a avaliar a diversidade genética dos stocks selvagens no Atlântico e Mediterrâneo. Isto permitirá não só avaliar o impacto local das práticas de pesca, mas também perceber como potenciar os mecanismos naturais de recuperação das populações”, refere Rute da Fonseca citada num comunicado sobre o estudo.

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Adriano Miranda

O trabalho sobre a biodiversidade das populações naturais, que já está em curso, pode ser muito relevante para a definição de quotas de pesca, para saber onde pescar e para definir o período de defeso. Ou seja, este “esboço” do genoma é uma ferramenta que pode ser explorada para múltiplas aplicações e que pode ser usado por cientistas e decisores políticos para proteger a sardinha. “É isso que se pretende”, resume Filipe Castro.

Um Google para os genes

Bruno Louro, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve (CCMar), espera exactamente o mesmo com o estudo do genoma da sardinha que disponibilizou esta sexta-feira, para já, numa base de dados de acesso aberto (na Orcae). O trabalho também foi concluído recentemente e foi submetido para publicação na revista GigaScience, tendo sido aceite a 17 de Setembro, mas ainda não foi publicado.

Antes de avançarmos alguns pormenores sobre esta versão do genoma da sardinha é impossível ignorar a coincidência. Bruno Louro também diz estar surpreendido com as duas publicações do mesmo genoma e confirma ao PÚBLICO que estamos perante dois “trabalhos independentes”. Infelizmente, as equipas não concertaram os esforços e não evitaram a duplicação de recursos e investimento. É caso para dizer que cada um puxou (e continua a puxar) a brasa para a sua sardinha. Os investigadores que quiserem usar o genoma da sardinha vão encontrar a mesma coisa nas duas versões. Há apenas ligeiras diferenças: “O nosso genoma está completo, está maior e com peças maiores”, diz Bruno Louro.

Na base de dados Orcae pode ser consultado o genoma montado e, tal como no Google, podem ser pesquisados genes ou o lugar de determinadas sequências. “Estamos satisfeitos com os resultados deste trabalho porque sabemos que irá permitir estudos de gestão e conservação da sardinha que até agora não eram possíveis”, refere Gianluca De Moro, investigador do CCMar e um dos autores do estudo, no comunicado sobre este trabalho. Bruno Louro acrescenta que estes dados “permitem, por exemplo, vir a definir com um rigor muito elevado os limites de cada população de sardinha, o que não era possível até agora”.

Embora admite que esta ferramenta possa ser útil como base biológica para estudos funcionais que sirvam para equacionar a viabilidade da produção da sardinha em aquacultura, Bruno Louro acredita que a abordagem servirá sobretudo para estudar e proteger a população selvagem da sardinha. “Vejo com dificuldade uma produção da sardinha em aquacultura”. Para já, esta equipa do CCMar e do Cibio vai juntar-se a investigadores IPMA e da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) para pôr em marcha um grande projecto do genoma da sardinha e da sua aplicação na gestão dos seus mananciais de pesca”.

Já há juvenis em Olhão

A sardinha europeia apresenta uma relevância comercial significativa mas também é evidente que durante a última década mostrou um declínio constante e acentuado nos níveis de captura e que dita cortes severos nas quotas de pesca na União Europeia. O facto de não existir (até agora) qualquer tipo de informação genómica impunha limites ao conhecimento das exigências fisiológicas e ecológicas da sardinha. Agora, sabemos mais sobre esta popular espécie ameaçada pela pesca excessiva. Em Julho deste ano, foi divulgado o parecer do Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla em inglês), o organismo científico que aconselha a Comissão Europeia sobre as limitações e quotas de captura de peixe. O documento incluía, pelo segundo ano consecutivo, a recomendação de “zero capturas” de sardinha, ou seja, a pesca da sardinha deveria ser suspensa em 2019 na costa atlântica de Portugal e Espanha, tendo em conta a diminuição do stock verificada nos últimos anos.

É preciso encontrar soluções para proteger esta espécie de forma sustentável. O artigo publicado na revista Genes lembra que aproximadamente metade do consumo de “produtos do mar” já é garantida por espécies criadas em aquacultura. Sublinha ainda que há avanços recentes nas práticas da cultura da sardinha em cativeiro que já representam promissoras possibilidades. A informação agora disponibilizada pode ajudar a concretizar estes projectos. “As informações recuperadas aqui e disponibilizadas publicamente contribuirão não apenas para elucidar os fundamentos da fisiologia, endocrinologia, reprodução e nutrição da sardinha, fornecendo uma estrutura essencial para a futura conservação e exploração sustentável desta espécie icónica, mas também vão contribuir para futuros estudos genómicos comparativos”, conclui o artigo.

Entre os esforços para a protecção da sardinha encontra-se um projecto que está a ser executado na Estação Piloto de Piscicultura de Olhão (EPPO), do IPMA, sob a orientação do investigador Pedro Pousão. Narcisa Bandarra, uma das autoras do artigo sobre o genoma da sardinha publicado na revista Genes, é investigadora do IPMA e participa também na experiência em curso em Olhão. O plano, recorde-se, admite a possibilidade de repovoamento da sardinha na costa portuguesa com recurso à aquacultura. Esse será o objectivo final, mas trata-se de uma missão a médio ou longo prazo. Ou seja, é preciso um travão nas expectativas que podem ter sido criadas quando a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, anunciou o projecto em 2017. O calendário previa que em Outubro deste ano fosse iniciada a reprodução dos peixes.

“O que estamos a fazer em Olhão na EPPO é a reprodução da sardinha e cultivo dos juvenis. Estamos a ver a viabilidade, em que eu acredito, de daqui a poucos anos conseguirmos ter as bases de cultivo e valores de custo para produzir comercialmente a sardinha como hoje se faz com a dourada ou a corvina ou, em menor escala, com o linguado”, adianta ao PÚBLICO o investigador Pedro Pousão. O coordenador revela ainda que naquela estação-piloto existem “sardinhas em tanque já há mais de dois anos, que põem ovos, e estão a ser produzidos juvenis para avaliar a vantagens e desvantagens”. Sobre os timings do projecto, o investigador diz que no próximo mês de Novembro serão iniciados “ensaios de alimentação/nutrição para ver o que é melhor para o seu crescimento e reprodução”. Paralelamente, acrescenta, está a arrancar um projecto em que o IPMA está envolvido e que vai comparar o stock de sardinhas do Mediterrâneo com o do Atlântico e ver como se comportam em termos reprodutivos, comportamentais, entre outros.

Filipe Castro sabe que o genoma pode ser crítico para tornar a sardinha um modelo mais fácil de manipular, gerir e explorar de forma sustentada. “Não sei se a sardinha alguma vez será explorada em aquacultura, é um desafio que não é fácil, porque é um peixe pequeno e há questões de biomassa e rentabilidade que lhe estão associadas, mas sei que se não conhecermos a biologia desta espécie isso será seguramente impossível.” Seja para a exploração de forma sustentada ou para a manutenção das populações selvagens, o importante é unir esforços para que a sardinha não desapareça. Que se puxe a brasa para a sardinha de todos.

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