Altas patentes do caso de Tancos têm menos hipóteses de serem ilibadas

As ordens de superiores hierárquicos que consubstanciam a prática de crimes não devem ser respeitadas, dizem a Constituição e a lei militar

Foto
A hierarquia militar não pode fugir às normas constitucionais LUSA/PAULO NOVAIS

As altas patentes do caso de Tancos têm menos hipótese de serem ilibados do que os militares de patentes mais baixas, como os sargentos. A razão é simples: ser-lhes-á mais difícil provar em tribunal que ignoravam estar a cometer crimes quando encenaram o reaparecimento do material militar. E caso surjam indícios fortes de que o próprio ministro da Defesa soube, embora a posteriori, da operação montada pelos elementos das Forças Armadas em cooperação com a GNR para entrarem na posse das armas roubadas, deixando fugir de propósito o autor da proeza, isso pode significar que Azeredo Lopes incorreu no crime de denegação de justiça.

As conclusões são de um coronel da Força Aérea na reserva, Manuel João de Oliveira Batista. Autor de uma tese de mestrado sobre a perpetração de crimes no cumprimento de ordens militares. O coronel esteve nove anos na Polícia Militar, onde lidou com vários casos de corrupção, como o do fornecimento de fardas portuguesas à Polónia, no final dos anos 90.

Porém, nem a sua experiência o preparou para as revelações sobre Tancos desta semana. “Fiquei incrédulo”, admite. Frisando não ter qualquer conhecimento privilegiado sobre o processo que não aquele que resulta da leitura das notícias, Oliveira Batista explica que enquanto os militares de mais baixa patente podem eventualmente vir a alegar não estar na posse de todas as informações relevantes sobre o assunto quando receberam ordens para infringir a lei, no caso das altas patentes, como o director da Judiciária Militar, que até é formado em Direito, a margem de manobra para invocar essa atenuante é muito reduzida. De resto, escutas divulgadas esta semana mostram que alguns dos arguidos temiam “ir parar à cadeia”, como de resto veio a suceder a dois deles, que se encontram em prisão preventiva. Ou seja, tinham consciência do ilícito que estavam a cometer, critério levado em conta pela justiça para aferir da culpabilidade de um suspeito.

Os militares têm vindo a alegar que entre perderem as armas de vez, com todo o risco que isso implicava, e recuperarem-nas deixando à solta o ladrão optaram pelo mal menor. “Mas não haveria outra solução naquelas circunstâncias?”, questiona o coronel. “Para quem está de fora e não conhece o processo torna-se muito difícil aquilatar, mas é isso que os juízes vão te de fazer”.

De resto, ressalva, quer a Constituição quer o Estatuto dos Militares das Forças Armadas e o Regulamento de Disciplina Militar dizem todos o mesmo: “As ordens de superiores hierárquicos que consubstanciam a prática de crimes não devem ser respeitadas”. Afinal, acrescenta, “os militares não são máquinas e juraram respeitar a Constituição”.

Embora o dever de obediência seja essencial ao próprio funcionamento das Forças Armadas, não é absoluto, pode ler-se nesta tese de mestrado, apresentada em 2014 na Faculdade de Direito da Universidade Nova: “Não pode exigir-se uma obediência cega, passiva”, sob pena de serem cometidas atrocidades. “As ordens emitidas à margem do Direito dentro das organizações estatais (como o são as Forças Armadas) tornam vulnerável o próprio Estado de Direito”, refere também a tese deste antigo docente da Academia da Força Aérea.

O autor defende, de resto, que o superior hierárquico que manda o subordinado cometer determinado tipo de crimes deve ser punido, mesmo que este último desobedeça e não o cometa. “Garantindo-se o castigo penal a partir do momento em que a ordem é formulada, não se precaveria a prática desses crimes?”, lança Oliveira Batista, que acha que a Judiciária Militar teria a ganhar em ser integrada na sua congénere civil. Mas não de imediato, à pressa e a reboque dos acontecimentos, vai avisando.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários