A lição de Marcelo ao país: atenção às Forças Armadas e ao voto, mas não só

É preciso construir o 5 de Outubro todos os dias, disse ainda o PR, num discurso no qual passou em revista a História do país. Recorrendo ao passado, conseguiu falar do presente, mas sem nunca nomear casos concretos.

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Marcelo Rebelo de Sousa nas comemorações desta sexta-feira do 5 de Outubro
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As comemorações do 5 de Outubro na Praça do Munícipio em Lisboa ficaram marcadas também pela realização de um protesto dos professores que realizam uma manifestação nacional esta sexta-feira às 15h.
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O líder da Fenprof, Mário Nogueira, pediu a Marcelo respeito pela profissão lembrando o passado do Presidente enquanto professor
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Marcelo foi Presidente, Marcelo foi professor. No discurso que fez na cerimónia do 5 de Outubro, o Presidente da República passou em revista vários momentos da História e conseguiu, sem nomear os episódios concretos que marcam a actualidade do país, tocar em vários assuntos de Estado, como aqueles que ensombram as Forças Armadas, como a corrupção, como a Europa, como os direitos sociais, como a importância da “renovação dos mandatos”, das alternativas políticas, e do voto, quando se avizinha um ano de diferentes eleições.

Foi uma lição aquela que Marcelo Rebelo de Sousa deu ao país, no dia 5 de Outubro, data que, “tal como a República, que permitiu implantar, e a democracia, que viria a consagrar, é obra de todos os dias”.

Na revisão da matéria dada, e seguindo uma cronologia desde o 5 de Outubro de 1910 até aos dias de hoje, falou de momentos como a chegada de Sidónio Pais ao poder, referindo que, “há precisamente cem anos, em 1918, divisões fratricidas, debilidade partidárias, tratamento errado das Forças Armadas e incapacidade para enfrentar crises económicas e sociais conduziram ao antiparlamentarismo e ao providencialismo de um homem, num apelo ao Estado pós-partidário que a si próprio se chamava República Nova".

Foi um século “de lições úteis para todos nós”, avisou: “Lições de como não há verdadeira democracia sem democratas, não há verdadeira democracia sem direitos do homem e liberdade, não há verdadeira democracia sem condições económicas e sociais que lhe confiram legitimidade de exercício. Não há verdadeira democracia sem permanente combate às desigualdades, à pobreza, à corrupção das pessoas e das instituições.” Mais do que isso: “Não há verdadeira democracia sem sistema político dinâmico e gerador de alternativas. Não verdadeira democracia sem atenção a entidades estruturantes como as Forças Armadas”, disse, acrescentando que também não há democracia sem uma “Europa muito mais exigente para consigo mesma”.

Recorde-se que Marcelo discursou um dia depois de ter sido noticiado que o ministro da Defesa Nacional, José Azeredo Lopes, terá sido informado da operação encenada pela Polícia Judiciária Militar para recuperar as armas furtadas de Tancos. Azeredo Lopes diz ser “categoricamente falso que tenha tido conhecimento de qualquer encobrimento” e o primeiro-ministro, António Costa, voltou, à margem da cerimónia, a reafirmar que mantém a confiança no governante e a fazer uma crítica velada às autoridades que têm estado a investigar o caso: “Falta esclarecer muita coisa e, desde logo, a captura dos ladrões. Devemos confiar em que a justiça faça o seu trabalho e os ladrões propriamente ditos sejam presos.”

Marcelo voltou mais tarde ao assunto ao visitar o navio Escola Sagres para afirmar: “Não tenho nada a acrescentar porque está uma investigação em curso e essa investigação está a prosseguir os seus trâmites. Devemos acompanhar aquilo que está a ser feito, não interferindo, respeitando e olhando depois para as conclusões.” Defendendo que é preciso esperar pelo “apuramento da verdade e de algumas responsabilidades".

Mandatos limitados

É certo que, no discurso do 5 de Outubro, Marcelo não se referiu directamente ao caso de Tancos, que tanto o preocupa. Mas falou na importância das Forças Armadas. Nem se referiu directamente ao facto de Joana Marques Vidal não ter sido reconduzida no cargo de Procuradora-Geral da República, nem sequer se referiu em concreto aos sectores da Saúde ou da Educação. Falou do passado para, no fundo, falar do agora e deixar clara, por exemplo, a importância da renovação de mandatos ou que “sem a efectiva protecção dos direitos fundamentais, não há verdadeira democracia.”

Para isso, recordou que, em 1968, o país “assistiria à chamada renovação na continuidade, ou seja, à continuidade do essencial da ditadura, apesar da renovação na liderança. Porque os regimes de poder pessoal são incompatíveis com a renovação dos mandatos, logo ali se descortinava o fim do fim da ditadura. Ou seja, por contraposição, o sentido que a democracia é tudo menos o culto e a convicção da perenidade do poder pessoal”, disse.

Sobre as eleições de 1979, em que venceu a Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM) considerou “seria um ano contraditório: insinuava a participação discreta de diversas áreas políticas no poder, por outro lado revelava os riscos das fragilidades dos sistemas de partidos e das ausências de alternativas substanciais”.

Os “ensinamentos” retirados das décadas vividas desde 1910 permitiram ainda a Marcelo perceber que “Portugal terá de afirmar em permanência a qualidade da democracia, a inovação e a proximidade no sistema política, a consistência do crescimento económico, a equidade do sistema social, a capacidade para atrair os que não querem partir ou partiram e querem regressar, para oferecer horizontes que o poupem, que nos poupem, a tentações radicais, egoístas, chauvinistas, ou xenófobas”.

A palavra democracia, a ideia de democracia, foi, aliás, dita e repetida ao longo de todo o discurso: “Uma democracia cada vez mais forte é essencial para concretizarmos a verdadeira ideia para Portugal, a ideia de que tanto se fala e tantos buscam, a saber: ser plataforma entre culturas, civilizações, oceanos e continentes. O voto poderá ser, no ano que nos espera, um caminho fundamental na Europa, como em Portugal, para a expressão dessa vontade colectiva, mas não é o único caminho. Todos os dias se constrói ou se destrói a democracia, todos os dias se constrói ou se destrói o 5 de Outubro”, disse, terminando a intervenção com um apelo: “Saibamos nós, todos nós, pelo voto, e pela prática de cada dia, dar vida a esta celebração para que o seu sentido seja cada vez menos evocação protocolar e cada vez mais expressão de desígnio nacional: Viva a República! Viva a democracia, mas, sobretudo, viva Portugal!”

Reacções a Tancos

No final das cerimónias, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que tutelou a Defesa no segundo Governo de José Sócrates, recusou-se a comentar o caso de Tancos. “Hoje a notícia principal é a atribuição do Nobel da Paz a dois grandes activistas, um homem e uma mulher que muito têm trabalhado pela causa da paz. Ambos se caracterizam pela luta contra a opressão sexual e o uso da violência sexual como arma de guerra”, afirmou à Lusa.

O líder do PSD, Rui Rio, que saiu logo no fim da cerimónia, falou aos jornalistas logo à chegada à Praça do Município. Sem poder assim comentar o discurso do Presidente, Rio defendeu, à Lusa, que as cerimónias como as do 5 de Outubro “servem para reafirmar alguns valores, neste caso os valores da República e já agora também os valores da democracia”, sublinhando que “a tendência do ser humano é estar quase sempre a violá-los.”

Questionado sobre se antecipava que Marcelo Rebelo de Sousa faria alguma referência implícita ao momento que as Forças Armadas atravessam com o caso de Tancos, Rui Rio disse apenas que era preciso “aguardar se o Presidente da República entendia como adequado ou não neste dia fazer uma referência a essa situação”. E concluiu: “Mas, repito: o 5 de Outubro é uma comemoração profundamente estrutural, uma data histórica do país. Tancos, por muito grave que possa ser, é uma questão de momento. Daqui por seis, sete ou dez anos passou despercebido, como é lógico.”

A líder do CDS e vereadora na Câmara de Lisboa, Assunção Cristas, insistiu na necessidade da demissão do ministro da Defesa e afirmou sobre as palavras do Presidente da República: “Noto um discurso de Estado, com uma revisão do que foram estas décadas de República, mas, sobretudo, com uma preocupação de futuro, dizendo-nos que a República e a democracia constroem-se diariamente e, para isso, precisamos de instituições fortes, desde logo as Forças Armadas.” E concluiu, em declarações à Lusa, defendendo que o CDS quer “que toda a verdade [do furto de material militar dos paióis] de Tancos seja descoberta, que todas responsabilidades políticas sejam apuradas” para que o país possa contar com “Forças Armadas credíveis e reabilitadas”.

O dirigente comunista Paulo Raimundo considerou que o Presidente não referiu “o maior desafio da República”, que é como estará Portugal daqui a 10 anos. Paulo Raimundo notou que Marcelo Rebelo de Sousa optou por “fazer um discurso conciso” e identificou “um conjunto de décadas e de acontecimentos marcantes da nossa história” sem referir, no entanto, como é que o país se encontrará em 2028, sublinhou em declarações à Lusa.

O líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares, classificou as palavras do Presidente como “relativamente fortes, quando ele diz que um dos pilares de uma democracia é o bom nome das Forças Armadas”.

Apontando que “é esse bom nome das Forças Armadas que está agora em causa”, por causa do caso de Tancos, o líder parlamentar do BE salientou que “há responsabilidades individuais que estão a ser investigadas judicialmente” e há também “uma preocupação política” que todos devem “ter também sobre estes acontecimentos”. E à Lusa defendeu que o caso de Tancos é “demasiado grave” e, por isso, exige rapidez na conclusão da investigação.

 Concluindo que “ninguém pode ser poupado, todos devem ser investigados, todas as investigações devem ser concluídas” para que possam depois ser “assacadas essas responsabilidades” junto dos “verdadeiros responsáveis”, acrescentou.

As comemorações do 5 de Outubro na Praça do Município em Lisboa ficaram marcadas também pela realização de um protesto dos professores que realizam uma manifestação nacional esta sexta-feira às 15h.

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