O roller skate chegou aos Jogos Olímpicos, mas há muito que o Algarve patina

A patinagem de velocidade — ou o roller skate — há muito que é prática apreciada em terrenos algarvios. Pelo menos é o que dizem os atletas da modalidade, que se dividem entre o GD Lagoa e o Clube Roller Lagos. O equipamento é caro e não há tantos apoios “como lá fora”, mas os portugueses lutam sempre, patim por patim, pelos lugares do pódio e Carolina Ferreira competiu nos Jogos Olímpicos da Juventude, na Argentina.

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Há um carro branco estacionado na pista que destoa dos tons do crepúsculo vespertino algarvio. Gradualmente, como se o volume fosse aumentando, ouve-se um zumbido. De repente, num movimento quase perfeito, um conjunto de capacetes aguçados contorna a curva e move-se veloz, quase como uma serpente no seu habitat. O zum zum intercalado é, afinal, o barulho de cada conjunto de rodas a picar o piso, patim ante patim, que, face à destreza de quem o percorre, mais parece ser forrado a veludo. “Mais três voltas!”, ordena a cabeça do pelotão. É um desafio ao carro branco? Uma última oportunidade para o duelo entre máquina e humano? Não ali. O dia já há muito corre para os atletas de patinagem de velocidade do Grupo Desportivo (GD) de Lagoa, às voltas na pista da Nobel International Business School, na cidade que dá o nome ao clube.

O cansaço, veio-se a saber depois daquela corrida em loop interrompido, é visível quando um patinador se agacha, em movimento, e coloca os braços sobre as coxas. “Aí é quando estás mesmo, mesmo morto”, atira Andreia Canha, de 23 anos. É das que vem dessa rotina das "nove às cinco" desde que começou a trabalhar. Mudou-se da Madeira para o Algarve aos 20, a convite do clube. Quando estudava, a disciplina também delineava os horários dos livros e dos treinos — algo comum a quase todos os que, em meia-lua, se sentam para explicar ao P3 tudo o que há para saber sobre patinagem de velocidade. Depois de Andreia senta-se Laura Nagiller, 18, a mais nova deste grupo a par de Carolina Ferreira, da mesma idade. Entre as duas, Miguel Bravo, com 20, a estudar em Lisboa e a tentar conciliar treinos com aulas que começam às 8h: “É muito complicado, até porque há mais condições aqui do que em Lisboa, e então tento vir ao Algarve mais vezes.”

Todos sentem dificuldades (por vários e diferentes motivos), mas a motivá-los — e a pedir mais voltas quando é preciso — está David Pedro, 30 anos. É treinador e atleta. “Tenho 23 anos de prática, mais anos do que a Carolina tem de vida”, diz. Tanto a jovem de Portimão como Laura começaram a treinar por volta dos sete. Já Miguel começou aos três — idade recomendada para iniciação na modalidade, aponta David. “Há sempre um período de adaptação e de aprendizagem e só depois passamos para competição”, explica o treinador. A idade para iniciação, até certo ponto, é algo relativa: Andreia começou aos 12 e conquistou primeiros lugares várias vezes em diversas competições. O resto do grupo também apresenta um palmarés individual e colectivo bastante sólido — e Carolina está em Buenos Aires, Argentina, até 18 de Outubro, para competir nos Jogos Olímpicos da Juventude.

É a primeira (e única) portuguesa a representar a modalidade na competição, “que serve de demonstração”. “Competir [nos Jogos Olímpicos] envolve mais pressão, mas já estava à espera disso nos treinos”, explica. A preparação para um evento daquela escala coincidiu com a sua entrada para a universidade, mas a jovem estudante de Medicina não estranha grandes competições; afinal, é vice-campeã europeia de maratona de juniores. Nos Jogos Olímpicos da Juventude, ainda a decorrer, Carolina ficou entre as oito primeiras em duas provas: foi a sexta classificada na final directa dos cinco quilómetros (eliminação) e oitava na prova de um quilómetro, adiantou a Lusa.

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Carolina Ferreira foi a primeira e a única portuguesa a representar a patinagem de velocidade nos Jogos Olímpicos da Juventude. DR

Em Buenos Aires competiu com as melhores da modalidade, mas isso é algo recorrente, já que em todas as provas tem adversárias que recebem “mais apoios". Contudo, “o foco e a determinação” pesam sempre mais. É, aliás, uma das poucas atletas de roller skate em Portugal com apoio de uma marca, algo que “pode ajudar a passar do quinto para o terceiro lugar”; patrocínios e contratos permitem outro acesso a equipamento novo para cada prova.

A modalidade que quer patinar país acima

O mesmo acontece com Diogo Marreiros, o atleta mais condecorado da modalidade em Portugal. Veste a camisola de outro clube, o Roller Lagos, mas a rivalidade dissipa-se quando as cores nacionais pintam o equipamento. Aos 26, tem quase toda a vida dedicada ao roller skate (começou com quatro anos), e ao longo desse tempo foi construindo um legado: é vice-campeão mundial e europeu em 10.000 metros (prova com pontos). E para provar que Lagos e Lagoa se dão mesmo bem, conquistou o segundo lugar em 3000 metros americana (estafeta) com David Pedro e Miguel Bravo. É o único patinador de velocidade em Portugal que se dedica inteiramente à modalidade: “Neste momento, é só patinagem, mas às vezes ajudo o meu pai na empresa de táxis.” Apesar disso, esclarece, “não dá para viver sozinho com o dinheiro que se faz”. As ajudas da marca permitem-lhe “ter acesso a todo o material necessário e trocar as rodas em todas as competições” — um luxo para muitos dos praticantes.

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Diogo Marreiros é o atleta mais condecorado da modalidade em Portugal. DixsPixels

Diogo tem uma visão optimista: “Acho que os bons resultados estão a trazer mais atenção para a modalidade.” E a participação nos Jogos Olímpicos da Juventude também. No entanto, Carolina sublinha que “não houve nenhum apoio para a preparação”. É o desfasamento entre a perspectiva algarvia sobre a modalidade e a nacional — “o município apoia, mas o país não”, refere. Diogo subscreve: “É uma modalidade muito conhecida no Algarve, mas que está em expansão para outras partes do país." Um desses exemplos é o Arsenal de Canelas, em Aveiro, “mas há esforços e organizações em Leiria, Lisboa e no Porto”. Somem-se às faltas de apoio os gastos com o equipamento e esbarre-se nesta realidade; só faz isto “quem gosta, porque quem pratica não espera obter retorno, não é uma realidade”, explica o treinador do Lagoa.

Estes patins — que nunca são somente patins — podem ser bastante dispendiosos. Todos ajudam o P3 a fazer as contas. “O capacete custa à volta de 120 euros, mas é um investimento a longo prazo”, diz David. “A não ser que caias e o partas”, interrompe Laura. O mais importante, dizem, são as rodas e o patim — porque isto pode tornar-se num puzzle, já que todas as peças são compradas à parte. “Há rodas, rolamentos, bota, chassis e separador entre rolamentos, uma data de peças”, enumera o treinador. As botas podem custar “mais de 900 euros” e são compradas nas competições do estrangeiro, “porque são feitas ao molde, para o pé do atleta”. Já o chassis “pode variar entre os 200 e os 300 euros”. Muito dinheiro? Oito rodas podem passar os 140 euros. Não é preciso fazer contas para saber que esta é uma modalidade cara — e que, em muitos países, dá contratos “de dois milhões”. Mas, por Portugal, a realidade é diferente, e tudo sai do bolso dos atletas. “Não ganhamos dinheiro, mas para gastar estamos cá todos”, finaliza Andreia, a brincar com a situação.

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Roller skate, correr em patins

Voltemos às voltas na pista. Há quem incline os braços para trás, como pássaro em voo quase picado, e há quem prefira coordená-los com os movimentos das pernas, como numa corrida sem patins. “É uma questão de aerodinâmica, a cortar o vento”, explica David Pedro. “Tem semelhanças com o ciclismo: o capacete é igual, temos óculos e forma-se um pelotão que se segue na trajectória.” Há três vertentes: “pista exterior, competição de estrada com 400 metros e outras competições como maratonas e meias maratonas”. É correr em patins, literalmente; por isso, há um certo grau de exigência “para quem não faz isto na desportiva”, alerta Andreia. Chegam a treinar, “no máximo”, 13 vezes por semana, todos os dias, de manhã e ao entardecer. De manhã, é à vontade do atleta: o treino é individual e pode incluir “ciclismo, ginásio, natação e corrida”, explica David, que realça a importância de não relegar o esforço apenas para a pista: “É uma forma de evitar lesões.”

“E de aproveitar o dia”, completa Andreia, que não vai para o trabalho sem antes se exercitar. Não tem, contudo, o carimbo de atleta de alta competição que lhe permitiria conciliar o emprego e os estudos com o roller skate (só o obtém quem faz parte da selecção nacional e Andreia não foi convocada). Miguel, que estuda Desporto em Lisboa, consegue treinar na faculdade, mas prefere voltar, “porque em Lagoa há mais condições”. Diz que os professores compreendem as vantagens que o estatuto lhe confere, tal como Laura e Carolina.

Ambas dizem não preferir outra realidade. “Até me ajudou a ganhar hábitos de estudo e obrigou-me a fazer horários mentais para conciliar tudo. É fácil de gerir”, refere Laura. Diogo Marreiros partilha da mesma opinião, mas confessa que “um ano somente dedicado à modalidade fez toda a diferença” no seu crescimento enquanto atleta. Não sabe se vai continuar a rasgar o vento sobre patins por muito mais tempo e acredita que a sua chegada aos Jogos Olímpicos (de Inverno, neste caso) poderá acontecer noutra modalidade — a patinagem no gelo, outra pista para os roller skaters. 

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