Viva o #MeToo! (A não ser que atinja CR7)

Onde estão a CIG e as Capazes quando mais precisamos delas? Quando o acusado se chama Cristiano Ronaldo, o machismo mais desbragado já tem ordem de soltura.

Quem se dê ao trabalho de ler a investigação do Der Spiegel sobre aquilo que se passou num hotel de Las Vegas entre Cristiano Ronaldo e a americana Kathryn Mayorga, em Junho de 2009, não terá a menor dificuldade em concluir que a acusação é séria e que é impossível despachar este caso como o de uma simples oportunista que está à procura de sacar mais umas massas ao melhor jogador do mundo.

Sim, Mayorga aceitou dinheiro para se calar em 2010, mas há boas razões para concluir que o fez em posição de fraqueza, e vários factos fragilizam a posição do futebolista português: o telefonema de Mayorga para a polícia de Las Vegas horas depois do que aconteceu (no qual se recusou a nomear o agressor); a carta pessoal que a jovem fez questão que fosse anexada ao acordo com a exigência de que ela fosse lida a Cristiano Ronaldo no período de duas semanas (o que, não tendo acontecido, é uma violação do acordo); e, sobretudo, a troca de correspondência entre advogados portugueses, onde está escrito, no que parece ser uma primeira versão dos factos, que Cristiano admitiu que Mayorga disse várias vezes “não” e que lhe pediu para parar, ainda que, segundo ele, se tenha mantido “disponível”. (A versão que surge em inglês no Spiegel online, e que pode revelar-se o maior problema para CR7, diz exactamente isto: “She said she didn’t want to, but she made herself available.”)  

Ronaldo respondeu ontem, dizendo: “Não vou alimentar o espectáculo mediático montado por quem se quer promover à minha custa.” É uma péssima resposta. E, no entanto, ela tem sido alegremente aceite por quase toda a gente em Portugal, porque o #MeToo é um movimento excelente e necessário, sim senhor, desde que não se meta com o nosso menino bonito da Madeira, porque esse é um herói nacional. E, assim, uma jovem americana que em situação normal seria apresentada como pobre vítima, neste contexto não passa de uma desavergonhada oportunista. Onde estão a CIG e as Capazes quando mais precisamos delas? Ah, já sei: estão entretidas a ler cadernos de exercícios da Porto Editora e a apresentar queixas do economista Pedro Arroja e do taxista Jorge Máximo por dizerem idiotices. Quando o acusado se chama Cristiano Ronaldo, o machismo mais desbragado já tem ordem de soltura.

Querem exemplos? José Cabrita Saraiva no editorial do jornal i de terça-feira: “A queixosa diz ter sido vítima de violação, o que é pouco consistente com o facto de ter acompanhado voluntariamente o jogador a um quarto de hotel.” Teoria 1: se sobes até ao quarto, aguentas o que lá se passa. Vítor Rainho no editorial do jornal i de quarta-feira: “Ninguém tem o direito de obrigar outra pessoa a fazer sexo só porque essa pessoa aceitou ir ao quarto de hotel. Mas que esta história é muito estranha, lá isso é.” Teoria 2: podes não aguentar o que lá se passa, mas lá que isso é estranho, é. Cereja em cima do bolo, Nuno Eiró, Filipa de Castro e Maya no programa Manhã CM: “vê-se que é uma rapariga muito tímida”; “ela achava que ia para um sarau de poesia”; “parece que depois lá naquelas coisas, com o Cristiano Ronaldo a mostrar-lhe as tácticas, houve assim uma situação que ela já não queria, que era sexo anal”. Conclusão de Maya (e teoria 3): “Quem vai para a guerra, vai para a guerra.” Não consigo conceber comentário mais machista e atentatório dos direitos das mulheres do que este. Mas como é para proteger Ronaldo, está OK. #MeToo, em português, lê-se “mito”. Não deve ser por acaso.

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