Corrigir a desvalorização das ‘licenciaturas pré-Bolonha’

As antigas licenciaturas são em tudo comparáveis ao acumulado dos atuais mestrados.

1. O problema mais grave que permanece de toda a transição e implementação do Processo de Bolonha em Portugal residiu e reside no tratamento incompreensível e injusto do enquadramento das antigas licenciaturas (das licenciaturas pré-Bolonha que vigoraram sensivelmente até 2007) no (novo) Quadro Nacional de Qualificações do Ensino Superior, resultante da transposição para o regime jurídico nacional do correspondente Quadro de Qualificações do Espaço Europeu do Ensino Superior, acordado pelos ministros do ensino superior dos países signatários do Processo, na sua reunião em Bergen, em Maio de 2005.

Note-se bem que este não é um problema europeu, nem do Processo de Bolonha, um movimento europeu, supra União Europeia, de imensa dimensão e relevância. É, sim, um problema nosso, resultante da nossa interpretação e transposição dos acordos de Bolonha para o nosso quadro jurídico, nos idos anos de 2007 a 2010, um problema que em limite afeta e prejudica centenas de milhares de portadores de diplomas dessas licenciaturas pré-Bolonha. Trata-se da perceção errada, vertida para a lei, dos quadros de qualificação dos cidadãos, do que significam, para lá das designações dos diplomas, as competências adquiridas por aqueles que na estrutura legal das suas épocas (anteriores a 2007) estudaram e concluiram com mérito as suas licenciaturas com vista à entrada na vida profissional ativa, particularmente nas profissões reguladas.

E, para os mais novos, ou refrescando memórias, relembro que as licenciaturas anteriores à reforma correspondiam, na generalidade, a formações acumuladas correspondentes a ciclos longos, que conferiam qualificações de base reconhecidas pela sociedade como adequadas para o início de exercício de profissões com responsabilidade e níveis de complexidade elevadas.

2. No cerne do problema, o ‘pecado original’ reside na Portaria 782/2009 de 23 de julho, que regula esse novo Quadro Nacional de Qualificações e que atira os portadores destas licenciaturas pré-Bolonha para o nível 6 das qualificações, o mesmo nível dos portadores dos antigos bacharelatos e das atuais licenciaturas, colocando-as abaixo dos atuais mestrados que se situam no nível 7. É essa a peça legal que deve ser corrigida. Desde o primeiro momento da sua publicação que me tenho interessado e empenhado (como abaixo testemunho) para corrigir a situação. Até agora sem sucesso, mas nunca desistindo.

O assunto voltou a debate recentemente, a respeito da quinta revisão do Decreto-lei n.º 74/2006, de 24 de Março, que instituiu o regime jurídico de graus e diplomas de ensino superior, a qual se concretizou com a publicação do Decreto-lei n.º 65/2018.

No âmbito das audições e discussões públicas que antecederam a aprovação desta revisão (e não está em causa a bondade de todas as alterações que têm vindo a ser introduzidas ao longo do tempo) circulou a informação (supostamente fidedigna!) de que o Governo, através do senhor ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, se teria comprometido a resolver esta questão criada pelo quadro legal estabelecido pela Portaria 782/2009.

Fumo, sem fogo. De facto, por razões que a minha razão desconhece e não alcança, o Decreto-Lei 65/2018 não acomoda tal correção, tal como aliás o jornal PÚBLICO deu conta na sua edição de 25 de setembro (de 2018).

Sabemos todos que estes atos de revisão da legislação têm momentos políticos. Penso que é na portaria que a correção deve ser feita, mas esta seria uma oportunidade que foi perdida numa luta importante por direitos e pela essência do Processo de Bolonha que entendo não dever deixar passar sem esta apreciação pública.

3. Não desejando entrar em desnecessários detalhes tecnico-jurídicos e estando fora do escopo deste texto discutir a bondade das razões que levaram à escolha, em 2006, da designação ‘licenciatura’ para uma formação diferente daquela que há muitos anos recebia no nosso país tal designação, e foram razões eminentemente socio-políticas bastante interessantes, foi rapidamente claro, à epoca, que essa escolha iria dar origem a grandes confusões se não houvesse a devida clarificação do Governo e dos órgãos de governo das instituições sobre a substância das qualificações associadas. Não houve esses esclarecimentos, foram muitas as confusões e os desvarios interpretativos subsequentes. 

Revisito o que escrevi em várias instâncias, dando como exemplo a publicação na revista Visão de 16 de junho de 2011:

  • O termo licenciatura foi adoptado para designação dos primeiros ciclos de Bolonha, mas as competências conferidas por uma licenciatura pós-Bolonha não devem ser comparáveis com as competências que as licenciaturas pré-Bolonha conferiam.
  • Cinco anos de formação não são administrativamente compactados em formações de três anos e comparáveis só porque se dá o mesmo nome, como alguns falsos ilusionistas à época o afirmavam.
  • Na generalidade das ofertas formativas, as actuais licenciaturas têm níveis de qualificação que se comparam às dos antigos bacharelatos.
  • As licenciaturas anteriores à reforma correspondiam, na generalidade, a formações acumuladas correspondentes a ciclos longos. Isto significa que as antigas licenciaturas, na essência das competências que conferiram a centenas de milhares de portugueses, são em tudo comparáveis ao acumulado dos atuais primeiros e segundos ciclos de Bolonha, isto é, a mestrados. O que, aliás, tem total paralelo com o consignado na Lei n.º 9/2009, de 4 de Março, que transpôs para a ordem jurídica interna a importante Directiva Europeia n.º 2005/36/CE, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais, na qual se expressa (artigo 9.º, alínea e) que o nível mais elevado de qualificação (não incluindo o doutoramento) está associado a formações de nível de ensino pós-secundário de duração acumulada de pelo menos quatro anos, isto é, duração acumulada longa.

4. É esta realidade que a Portaria 782/2009 deveria refletir, mas não reflete. A Portaria ignora a Lei n.º 9/2009 que claramente aponta para as inequívocas diferenças entre as licenciaturas pré-Bolonha e as atuais licenciaturas de Bolonha.

Esta problemática foi levada à atenção do governo da época, em 5 de fevereiro de 2010, nas pessoas do senhor ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, da senhora ministra da Educação e da senhora ministra do Trabalho e Solidariedade Social, a quem o senhor bastonário da Ordem dos Engenheiros, instituição de que eu era vice-presidente nacional, enviou uma carta, chamando a atenção para o grave erro que a Portaria continha e propondo uma solução juridicamente cuidada. Uma solução muito simples de correção, com o devido detalhe jurídico, de duas linhas do quadro do Anexo III da Portaria que estabelece a correspondência entre os níveis de educação e de formação e os níveis de qualificação:

  • Na linha do Nível 6 de Qualificações, em que constam ‘Bacharelato e Licenciatura’ como níveis de formação, clarificar que se trata de Licenciatura  pós-Bolonha, correspondente ao 1.º ciclo de estudos do Quadro de Qualificações do Espaço Europeu do Ensino Superior, já acima mencionado.  
  • Na linha do Nível 7 de Qualificações, em que consta ‘Mestrados’ como nível de formação, substituir por Mestrados e Licenciatura pré-Bolonha (licenciatura anterior ao presente regime).

Não se trata pois de atribuir graus académicos, trata-se de conferir equivalências de qualificações para fins eminentemente profissionais.

Aqui fica. Muito mais haveria a comentar, mas, na limitação física de espaço, isto é o essencial. As soluções do passado são soluções do passado, sem retroativos. O que se deve procurar é justiça projetada no futuro, tão próximo quanto possível. Coordenador Nacional do Processo de Bolonha entre 2003 e 2005; delegado nacional ao BFUG – Bologna Follow-up Group em períodos entre 2004-2005 e 2006-2010; vice-presidente da Ordem dos Engenheiros entre 2004 e 2010; director da FEUP entre 2010 e 2014; reitor da Universidade do Porto entre 2014 e 2018

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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