Assédio sexual: por que é que não fizeram queixa? Elas explicam

No seguimento das declarações de Trump em relação às mulheres que acusaram Brett Kavanaugh, sugerindo que estas deveria ter feito queixa na altura, surgiu o hashtag #WhyIDidntReport.

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Cara Delevingne é uma das mulheres que acusa Harvey Weinstein de crimes sexuais REUTERS/Mark Blinch

Por que é que não fiz queixa? A resposta a esta pergunta tem corrido as redes sociais nos últimos dias, na forma do hashtag #WhyIDidntReport. Tornou-se popular depois de Donald Trump ter questionado a veracidade das duas acusações de assédio sexual que surgiram contra Brett Kavanaugh — o juiz que o próprio nomeou para Supremo Tribunal dos Estados Unidos —, já que estas mulheres não tinham feito queixa na altura dos alegados incidentes, que remontam há mais de três décadas. Entre os milhares de pessoas que têm partilhado nas redes sociais aquilo que as motivou a manter o silêncio sobre crimes sexuais durante anos, estão algumas das figuras mais proeminentes do #MeToo.

“A primeira vez que aconteceu” tinha sete anos, conta Ashley Judd e os adultos com quem falou não deram importância ao caso. “Por isso, quando fui violada aos 15 anos, só contei ao meu diário. Quando uma adulta leu, acusou-me de fazer sexo com um homem adulto”, escreve no Twitter. Também Mira Sorvino aponta para um primeiro evento que a desmotivou mais tarde a apresentar queixa. Ambas as actrizes estão entre as dezenas de mulheres que acusaram Harvey Weinstein de diversos crimes de violência sexual — que o produtor de cinema nega em absoluto.

Cara Delevingne apresenta outro motivo: “Senti-me envergonhada com o que aconteceu e não quis arruinar publicamente a vida de alguém, apesar de terem arruinado a minha em privado”, escreve no Twitter. Poucos dias depois da publicação do explosivo artigo no New York Times que detalhava como Weinstein tinha silenciado as mulheres que o acusavam de assédio sexual durante décadas, a modelo e actriz britânica partilhou a sua história através das redes sociais.

Na altura, contava como o produtor a tinha tentado beijar, depois de ordenar outra mulher a beijá-la e de ter feito comentários ao telefone acerca da sua orientação sexual. “Estava tão hesitante em falar. Não queria magoar a sua família. Senti-me tão culpada como se tivesse feito alguma coisa errada”, escrevia então. “Também estava horrorizada porque este tipo de coisas tinha acontecido a tantas mulheres que conheço”.

Num artigo escrito na primeira pessoa e publicado esta terça-feira no New York Times, a actriz e autora indiana Padma Lakshmi explica por que razão manteve silêncio depois de ter sido violada aos 16 anos. “Quando penso nisso apercebo-me que pela altura da violação tinha absorvido certas lições. Quando tinha sete anos, um familiar do meu padrasto tocou-me entre as pernas e pôs a minha mão no seu pénis erecto. Pouco depois de contar à minha mãe e ao meu padrasto, enviaram-me para a Índia, para viver com os meus avós. A lição foi: se te pronunciares, vais ser isolada”, escreve. “Compreendo por que ambas as mulheres [que acusam Brett Kavanaugh] guardariam esta informação para si próprias durante tantos anos, sem envolver a polícia. Durante anos, fiz a mesma coisa.”

A primeira acusação contra Brett Kavanaugh veio de Christine Blasey Ford, uma professora universitária da Califórnia, que afirma que este a tentou violar em 1982, quando tinha 17 anos. Dias depois, uma colega de universidade de Kavanaugh, Deborah Ramirez, veio a público dizer que durante o ano académico de 1983/84, este terá colocado o pénis junto à sua cara. Na quarta-feira, uma terceira mulher veio acusar o juiz norte-americano de ter cometido vários abusos sexuais, no início da década de 1980, inclusive de ter estado presente numa violação em grupo. Kavanaugh tem negado todas as acusações, afirmando inclusive numa entrevista à Fox News, esta segunda-feira, que sempre tratou “as mulheres com dignidade e respeito”.

“São todas alegações falsas para mim”, afirmou Trump numa conferência de imprensa, esta quarta-feira. Além de lamentar os danos à reputação de Kavanaugh, questionou por que razão não houve queixas durante 36 anos.

De crime a queixa

Apesar de inúmeros estudos demonstrarem a quantidade de casos de crimes sexuais que não são reportados, argumentos semelhantes ao do presidentes dos Estados Unidos são frequentemente utilizados para descredibilizar quem o faz. Por outro lado, mesmo as vítimas de crimes sexuais que apresentam queixa correm o risco de não serem levadas a sério. Há também quem não reconheça imediatamente o crime do qual foi vítima.

Num estudo da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego centrado no assédio sexual no contexto laboral, referente a 2015, a acção de 60,3% das mulheres perante uma situação de assédio sexual foi esperar que esta não se repetisse. Entre as razões mais comuns para qualquer reacção perante uma situação destas estavam o medo de sofrer consequências profissionais, o aconselhamento de outras pessoas a manter o silêncio, o medo de ser despedida, o desconhecimento de a quem recorrer e o medo de que ninguém acreditasse na acusação.

Há quase três meses abriu no Porto o segundo centro de apoio especializado a mulheres vítimas de violência sexual do país, a seguir àquele que abriu em Lisboa no início de 2017 — que no primeiro ano recebeu 51 vítimas de violência sexual. O objectivo destas organizações é acompanhar as vítimas de crimes mais recentes, inclusive com apoio jurídico, bem como ajudar pessoas a ultrapassar traumas relacionados com episódios de há muitos anos. É que em Portugal a lei prevê apenas seis meses para que as vítimas de um crime de violência sexual apresentem queixa.

Mesmo os casos que chegam a tribunal, não têm por vezes os desfecho que as vítimas esperam. De acordo com dados pedidos pelo PÚBLICO ao Ministério da Justiça, em 2016, apenas 37% dos condenados por crimes sexuais foram para a prisão — sendo que os tribunais portugueses aplicaram penas de prisão suspensas em 58% das 404 condenações por crimes sexuais em que são conhecidas as sanções decretadas. Esta semana, cerca de 400 pessoas juntaram-se à porta do Tribunal da Relação do Porto, para protestar uma decisão que confirmava a pena de prisão suspensa de dois homens acusados de violar uma mulher enquanto esta estava inconsciente.

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