Teimosia católica, jornalismo inquisitorial, o Papa, os abusos e o fascismo

Não é por acaso que os sectores católicos que mais se opõem ao Papa coincidem, em grande parte, com o fascismo que está a erguer a cabeça no nosso meio.

O Papa Francisco não faz nada contra os abusos sexuais do clero e deveria demitir-se. O relatório conhecido esta terça-feira na Alemanha confirma isso mesmo e vem dizer de novo que a Igreja Católica continua a encobrir estes casos e a não querer saber. E as acusações do arcebispo Viganò aí estão para provar tudo isso e ainda que o Papa sabia de tudo, não é verdade?

Não, nada disso. Tudo ao contrário.

A responsabilidade destes lugares-comuns, equívocos e preconceitos cabe também a algum jornalismo que prefere assumir-se como inquisidor-mor medíocre, que condena sem julgar, que se instala em lugares-comuns e conclusões prévias, em vez de cumprir a sua missão de investigar a verdade. E que, desde o primeiro momento, assumiu como comprovados todos os argumentos de Viganò, sem cuidar de os averiguar.

A investigação alemã agora conhecida foi encomendada pelos bispos do país a uma comissão independente.

Os mesmos bispos tinham, em 2010, criado uma linha telefónica para denúncia de casos de abuso sexual, levando a sério as mensagens dos últimos três papas (João Paulo II, que já em 2002 falava de “crime” e “tolerância zero”, Bento XVI e Francisco). Mas não foram só os bispos alemães. Também já em Fevereiro de 2004, na sequência dos casos de Boston (que inspiraram o filme Spotlight), um relatório encomendado pelo episcopado dos Estados Unidos revelava que, em 50 anos, pelo menos quatro mil pessoas tinham sido vítimas de abusos.

O caso da Alemanha (como também da Austrália ou da Holanda, por exemplo) mostra que está a mudar a forma como a Igreja Católica lida com este problema. Desde que, em 11 de Junho de 1993, João Paulo II escreveu aos bispos dos EUA, depois da divulgação dos primeiros casos, quer nos EUA quer no Canadá (sim, a história não começou com Boston nem com a Pensilvânia, como parece que muita gente descobriu agora).

Para ser claro: as medidas postas em prática, mesmo se tímidas no início (porque era muito menor a dimensão da tragédia que então se conhecia), já permitiram reduzir em muito o número de abusadores. Na Pensilvânia, o último relatório-choque, há apenas dois casos conhecidos desde 2002. Por comparação com as cinco décadas anteriores (300 padres abusaram de milhares de crianças), isto é um avanço imenso — mesmo sabendo que bastaria um só caso de abuso para se estar perante algo inominável e inadmissível.

Francisco chegou e, desde o primeiro dia, mostrou que queria limpar a Igreja Católica desta praga. Literalmente, desde o primeiro dia: na manhã seguinte à sua eleição, dirigiu-se à basílica de Santa Maria Maior, onde encontrou o cardeal Bernard Law, acusado de encobrir muitos casos de abusos em Boston (a história contada em Spotlight). E disse-lhe que não gostaria que ele continuasse a viver nas instalações da basílica.

Depois disso, o Papa ordenou várias investigações (a última foi ao Chile e os seus efeitos ainda se estão a fazer sentir), criou uma comissão para a protecção de menores, promoveu a criação de uma área de estudos na Universidade Gregoriana para lidar com todas as componentes desta questão... A sua última decisão foi convocar uma cimeira, em Fevereiro, com todos os presidentes de conferências episcopais do mundo. Claramente, o pontificado de Francisco jogar-se-á nessa cimeira. O Papa sabe-o, mas sabe que, em jogo, estará sobretudo a credibilidade da Igreja Católica para muitas décadas.

Francisco fez tudo certo? Não. A comissão ficou longe de corresponder ao que ele pretendia, pelos obstáculos criados por algumas estruturas da Santa Sé; no Chile, a deficiente informação que lhe chegou levou-o a defender inicialmente a inocência do padre Fernando Karadima, acusado de abusos e protegido por bispos e outros padres. O Papa admitiu depois o erro, emendou a mão e enviou ao Chile dois dos seus investigadores mais importantes da área. Posteriormente, recebeu várias das vítimas de Karadima, com quem passou longas horas. A seguir, convocou os 34 bispos do país, entregando-lhes uma carta duríssima onde falava de narcisismos, elitismos e abuso de poder e consciência. O documento já levou à saída de sete bispos, depois do pedido de demissão apresentado colectivamente.

A última comoção mediática foi, como se sabe, a carta que o arcebispo Viganò divulgou, acusando o Papa de conhecer o que se passara com o cardeal McCarrick, que encobrira vários casos de abusos — e a quem, entretanto, Francisco retirou o título de cardeal, o que acontece pela primeira vez na história por uma tal razão. A resposta do Papa aos jornalistas — leiam a carta, façam o vosso trabalho e retirem conclusões — indignou muitos e foi, para outros, a confirmação de que as acusações de Viganò eram verdadeiras.

Muitas dessas pessoas ignoraram o que se publicou em tantos jornais e revistas. Ainda o Papa não respondera aos jornalistas sobre o assunto e pelo menos já dois jornais dos EUA — o New York Times e o National Catholic Reporter (NCR) — estavam a fazer o seu trabalho, desmentindo, com factos, várias das afirmações de Viganò. (O NCR, apesar do título, é insuspeito, pois foi o primeiro a denunciar vários casos de abusos, já na década de 1990). O New York Times falava mesmo de “alegações infundadas” e “ataques pessoais” que apenas constituíam uma “extraordinária declaração pública de guerra contra o papado de Francisco, feitas naquele que é talvez o seu momento mais vulnerável”.

Apesar disto, vou ao ponto, no entanto, de admitir que o Papa tenha sido informado sobre McCarrick. Mas que, eventualmente, decidiu esperar por conclusões mais seguras, por exemplo. Não me parece que esse pormenor seja suficiente para condenar a sua gestão deste assunto, porque, repito, desde o primeiro dia que as suas decisões, palavras e actos manifestam a vontade de acabar com a situação. Aliás, podemos perguntar quem, tendo responsabilidades de gestão ou direcção de algum organismo, nunca errou em decisão alguma (mesmo os que dizem que nunca se enganam e raramente têm dúvidas, como sabemos, erram muito e não têm a capacidade de reconhecer o erro, como o Papa já fez várias vezes).

Se voltarmos a 2013, podemos recordar que, após a eleição, Francisco também foi acusado de ter estado silencioso perante a ditadura argentina. O Papa nunca respondeu às acusações. Afinal, descobriu-se que tinha falado pelos canais próprios, com isso conseguindo ajudar a salvar largas dezenas ou centenas de pessoas.

Há outro pormenor, que tende a ser esquecido: a maior parte dos abusos — dizem-no todos os anos os números da PJ em Portugal e de muitos outros países — continuam a ser praticados por familiares.

Isto inibe a responsabilidade de padres, bispos e Papa? Não, de todo. Vários países e estados já anunciaram a decisão de proceder a investigações como a da Pensilvânia.

Se a Igreja não quiser ser pró-activa no sentido de ser a primeira a querer conhecer a verdade e persistir na teimosia de negar que haja abusos (como se tem reafirmado em Portugal), continuaremos durante anos a assistir a investigações sucessivas.

Uma última nota: não é por acaso que os sectores católicos que mais se opõem ao Papa coincidem, em grande parte, com o fascismo que está, de novo, a erguer a cabeça no nosso meio. Ambos se posicionam, mesmo se por vezes em graus diferentes, contra o diferente (seja ele refugiado, homossexual, imigrante, mulher, estrangeiro...), na defesa da guerra, na negação da mão humana nas alterações climáticas, no menosprezo dos excluídos e dos pobres. Por isso, a nenhum desses sectores interessa que a voz do Papa Francisco se possa continuar a ouvir.

Nota final: No texto “Verdade, confiança, dar a palavra aos crentes: uma nova Reforma da Igreja”, disponível em https://publico.pt/n1841977, acrescento outras questões que na minha opinião a Igreja tem de enfrentar nesta crise.

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