Suzanne Cotter: “Eu não programei a Joana Vasconcelos.” Então, quem foi?

Antes de estalar a polémica com a exposição de Mapplethorpe em Serralves, existiria já um certo desconforto na direcção artística com a possibilidade de a fundação vir a receber a antológica de Joana Vasconcelos que hoje está em Bilbau. A antiga directora, a australiana Suzanne Cotter, garante que não a programou, mas o facto é que ela está prevista para o próximo ano.

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Suzanne Cotter foi directora de Serralves até ao final do ano passado neg nelson garrido
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Joana Vasconcelos no seu atelier em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Uma das perguntas a que a administração da Fundação de Serralves terá de responder na conferência de imprensa marcada para esta quarta-feira, em que está sob suspeita de ingerência na programação do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, é se a exposição de Joana Vasconcelos está mesmo programada para 2019 e quem é que a programou.

A artista portuguesa tem neste momento uma exposição antológica no Museu Guggenheim de Bilbau, em Espanha, tendo anunciado no início deste ano que deseja trazê-la ao Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Intitulada I’m  Your Mirror, com comissariado de Petra Joos, curador do próprio Guggenheim, e de Enrique Juncosa, um independente, a recepção desta itinerância ainda não foi confirmada oficialmente pelo museu do Porto.

Joana Vasconcelos, considerada uma das artistas contemporâneas portuguesas mais populares, com exposições que batem recordes de bilheteira, tem dito em diversas entrevistas, nomeadamente ao PÚBLICO, que está tudo encaminhado para expor no início do próximo ano no mais relevante museu de arte contemporânea nacional: “A exposição é produzida pelo Guggenheim e exportada para Serralves. É um assunto entre eles. O que posso dizer é que as conversações estão a correr bem e que estamos a trabalhar sobre a exposição. Agora os acordos entre eles não são comigo...”

Esta semana, em entrevista ao semanário Expresso, Isabel Pires de Lima, antiga ministra e membro da administração e da comissão executiva da Fundação de Serralves, que no domingo se transformou em porta-voz de ambas, à pergunta sobre se a exposição tinha sido uma escolha do director artístico demissionário, remete para o período em que a australiana Suzanne Cotter estava à frente do museu. “O João Ribas não era director do museu quando foram feitos os primeiros contactos. Era a Suzanne Cotter. O João Ribas nunca se manifestou contra a exposição de Joana Vasconcelos.”

Contactada pelo PÚBLICO, a australiana Suzanne Cotter, que saiu de Serralves para dirigir um museu no Luxemburgo, conta a sua versão dos factos: “Tal como muitos artistas em Portugal no meu tempo de directora, a Joana veio ter comigo e disse-me que queria ter uma exposição em Serralves. Não foi a única a fazê-lo, muitos, muitos outros artistas também o fizeram.”

Suzanne Cotter não se lembra da data deste primeiro contacto, mas acrescenta que Joana Vasconcelos esteve em Serralves: “Ela visitou o museu e disse-me, basicamente, que ia ter uma nova exposição no Museu Guggenheim de Bilbau. Eu respondi: ‘É muito interessante. É óptimo.’ E ela disse-me: ‘Seria óptimo que viesse para Serralves.’ Eu disse-lhe que era ‘uma ideia muito interessante e que gostava de saber mais coisas sobre a exposição’. Foi tudo.”

Não houve nenhum compromisso assumido nessa altura com Joana Vasconcelos?, perguntamos numa conversa telefónica com a actual directora do Musée d’Art Moderne Grand-Duc Jean (Mudam). “Não. Nenhum compromisso. Mas, claro, é preciso ter este contexto de que ela não é a única artista que vai ter comigo e que diz que quer fazer uma exposição em Serralves. Há muitos artistas que fizeram isso no meu tempo. É perfeitamente natural.” Cotter assegura ainda que disse a Vasconcelos o mesmo que disse a muitos outros artistas: “‘Eu respeito-a. Nós temos um programa... Estamos interessados em saber mais, mas sem compromisso.’ Nós recebemos propostas o tempo todo e é importante normalizar isto.”

À pergunta se programou Joana Vasconcelos para Serralves em 2019, Cotter responde, peremptória: “Não, não programei. A resposta é que eu não programei. Eu recebi essa proposta e estava em apreciação. Na altura em que a questão começou a receber mais atenção, eu já tinha entregado a minha demissão. Eu já não seria responsável pela programação depois dessa fase.”

Estaria Cotter interessada em apresentar a antológica de Bilbau em Serralves? A antiga directora responde negativamente: “Digo apenas que gostava de mostrar o trabalho de Joana Vasconcelos no contexto mais alargado da arte portuguesa.” Não, então, uma exposição individual? “Digamos assim: eu não programei a Joana Vasconcelos. Não fazia parte do meu programa.”

Sobre o que se seguiu depois, durante a direcção de João Ribas, Suzanne Cotter não se quer pronunciar, respeitando o silêncio a que o director demissionário se remeteu.

Ribas e Vasconcelos

Foi na sexta-feira, já depois de noticiadas na imprensa as restrições de acesso à exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, que Ribas comunicou à administração de Serralves que se demitia do cargo de director do museu, por não ter “condições para continuar à frente da instituição”, uma notícia avançada pelo PÚBLICO, optando por não explicar as razões na base da sua decisão. Passados quatro dias, continua sem o fazer.

Ainda que falte um esclarecimento cabal sobre os motivos, é seguro dizer que a sua saída da direcção vem na sequência de a administração ter interditado a menores de 18 anos uma parte da exposição dedicada a Robert Mapplethorpe (situação entretanto alterada) e de, alegadamente, ter interferido nas imagens que se dariam a ver nesta retrospectiva do fotógrafo norte-americano, a primeira em Portugal.

Na primeira entrevista de fundo que deu como director do Museu de Serralves, em Julho deste ano, João Ribas recusou-se a abordar directamente o assunto da exposição dedicada a Joana Vasconcelos. Sobre se havia algum desconforto com a possibilidade de a itinerância chegar a Serralves, o director respondeu de uma forma ambígua, alertando para o facto de a programação não ter sido ainda anunciada: “Eu não tenho desconforto. Este museu tem de ser aberto a todas as expressões culturais. Tem de ter uma abordagem, uma atenção e uma curiosidade em relação a tudo o que é feito no campo da arte contemporânea. A Joana Vasconcelos é uma artista extremamente relevante, que tem desenvolvido um trabalho marcante e que merece um lugar no meio. O que eu quero desenvolver é um projecto distinto, que tem que ver com linhas de investigação sobre o que deve ser um museu no século XXI. Há abordagens que me interessam, o museu vai celebrar 20 anos de uma história marcada pela diferença, sempre com posições extremamente abertas...”

Contactado pelo PÚBLICO, o atelier de Joana Vasconcelos não esclarece se já assinou um contrato com Serralves, nem se a exposição foi negociada por João Ribas. “Como esperamos que compreenda, não vamos fazer comentários acerca desta temática”, diz Aviva Obst, responsável pelas relações com a imprensa, acrescentando que a artista vai inaugurar esta semana uma exposição no Musée d'Art Moderne et Contemporain, em Estrasburgo (França).

Várias fontes ouvidas pelo PÚBLICO, entre artistas e curadores que pediram o anonimato por terem relações com Serralves, defendem que João Ribas exprimiu a sua oposição à antológica de Joana Vasconcelos em Serralves. Algumas destas pessoas acrescentaram que o director artístico até se mostrou aberto a trabalhar a obra da artista, mas numa curadoria que seria desenvolvida pelo próprio museu.

Afinal, há ou não programação?

No domingo, na entrevista ao Expresso já citada, a administradora Isabel Pires de Lima disse taxativamente que João Ribas está ainda a preparar o próximo ano e que o director artístico demissionário “está atrasado”.

Na mesma resposta em que garante que “a programação ainda não foi apresentada à administração”, a antiga ministra da Cultura admite, paradoxalmente, que há já “contactos em curso” e “nalguns casos há contratos assinados, noutros não”.

O PÚBLICO tentou perguntar na segunda-feira a Pires de Lima como pode haver “contratos assinados” em função de uma “proposta” que, segundo ela, “não foi ao conselho de administração”, mas a ex-deputada socialista remeteu quaisquer esclarecimentos sobre a situação que se vive hoje em Serralves para a conferência marcada para esta quarta-feira.

A página de Serralves no Instagram parece, no entanto, contrariar as declarações de Pires de Lima. Numa das fotografias publicadas nesta rede social referentes ao 19.º Encontro Anual de Formadores, que decorreu na fundação a 18 de Setembro, vê-se o director artístico no palco, junto a um púlpito, sendo projectada atrás de si uma imagem onde se lê “Programa de exposições 2019”. Ana Pinho, presidente do conselho de administração, estava na sala (aparece em várias das fotografias partilhadas no mesmo Instagram), entre dezenas de professores e de outros profissionais ligados à educação.

Terá Ribas feito esta apresentação perante entidades exteriores sem antes ter submetido a sua proposta de programação à administração, como diz Pires de Lima? Dificilmente. Jérémy Pajeanc, artista plástico e professor da Escola Francesa, no Porto, assistiu ao encontro de dia 18 no Auditório de Serralves, e confirmou ao PÚBLICO que foi apresentada a programação para 2019 pelos responsáveis de vários serviços da fundação, incluindo o museu.

Pajeanc recorda em particular a referência à apresentação no Porto da exposição I’m Your Mirror, de Joana Vasconcelos, feita pela própria presidente da fundação, Ana Pinho. Foram, então, Ana Pinho e a restante administração de Serralves que programaram a itinerância de Joana Vasconcelos para o Museu de Serralves, contra a opinião dos dois directores artísticos?

Com Sérgio C. Andrade

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