Joana Espadinha já é uma cantora pop

O Material Tem Sempre Razão marca o fim da timidez de Joana Espadinha como cantora pop. Depois de se ter formado no jazz e desistido de seguir o exemplo de Angel Olsen, gravou com Benjamim um belíssimo álbum de canções.

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Depois de anos a estudar música e a especializar-se no jazz, algo que diz tê-la prejudicado como intérprete, ao torná-la mais racional, tentou recuperar a sua naturalidade. Joana desligou os filtros. Agora é só ouvi-la Joana Linda

Tudo começou com uma "tampa". Joana convidou Benjamim para assistir a um concerto seu. Benjamim desafiou-a, depois, para um café. Não um jantar, nem um almoço sequer, mas um café – que é a forma adequada de não alimentar expectativas e reduzir ao mínimo o investimento num compromisso. Ele planeava dar-lhe uma ‘tampa”, confessou mais tarde. Quando Benjamim respondeu ao convite de Joana Espadinha para trabalharem juntos no segundo álbum da cantora, aquele “Gostei imenso, estou cheio de trabalho e agora estou mais interessado em trabalhar com pessoas que escrevam em português” poderia ter soado à forma cortês e diplomática de declarar que esta relação não iria funcionar. Só que acrescentou o conselho de que Joana deveria concentrar-se também na escrita em português e largar uma língua rotinada em rimas como high e sky, night e light, sea e free.

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Joana voltou para casa e passou “uma semana a deprimir”. A conversa tinha soado a rejeição; a porta que ficara entreaberta implicava deitar fora uma mão-cheia de canções de que se orgulhava e recomeçar o processo de escrita. Embora a sua intenção, desde o início, passasse por um álbum bicéfalo, cada uma das metades a falar a sua língua, e a utilização do português já estivesse nos seus planos, o caminho que estava a tomar e a entusiasmá-la nas suas composições tinha por norte “um universo meio folk, meio Angel Olsen” que dificilmente não seria apagado por qualquer tentativa de tradução. Essa folk de veios country, tal como a professam Angel Olsen ou Marissa Nadler, vem embalada num pacote que inclui já o idioma inglês por defeito, desbotando ou tornando-se até grosseira no caso de aplicar um bisturi para extirpar essa característica e enxertar qualquer outra naquele corpo. O perigo de soar descabido ou, pior ainda, fajuto era algo que Joana Espadinha queria evitar a todo o custo.

E então, controlada essa primeira reacção depressiva, a cantora resolveu “embarcar na viagem de voltar a escrever”. Pela calada, durante seis ou sete meses, compôs uma nova fornada de canções e voltou a chamar por Benjamim. “Entretanto ele tinha-se esquecido de mim”, recorda a cantora ao Ípsilon. Mas aceitou passar por casa dela para ouvir as canções com que Joana se forçara a renascer criativamente. Num primeiro momento, o músico e produtor espantou-se sobretudo com a resposta ao conselho que lhe dera: “Não acredito que fizeste mesmo aquilo que te disse – nunca ninguém faz isso!” A nova leva de canções, integralmente em português, não lhe deixou grandes dúvidas: a partir dali, havia uma relação a dois a iniciar-se.

Desvios do Avesso

A insistência de Joana Espadinha em Benjamim era tudo menos acidental. Conhecendo as produções de Luís Nunes (o nome que consta no cartão de cidadão do músico anteriormente conhecido como Walter Benjamin – quando também ele passou a escrever em português, largou a pele do cantautor com designação de filósofo alemão), sobretudo o primeiro álbum de Márcia e os discos de Julie and the Carjackers, a cantora formada pelo jazz sabia que tinha ali alguém de um sentido apurado de canção e para quem a linguagem pop não tinha a aparência de uma besta indomável.

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A primeira experiência de Joana Espadinha com o pé fora do jazz, no disco de estreia Avesso, era ainda uma investida tímida no imaginário pop. Rodeada de músicos que, à sua imagem, vinham do jazz mas não queriam deixar-se entalar entre os standards e a música improvisada, fatalmente atraídos pela boa sedução melódica de uma canção sem arestas, a cantora avançava num álbum de navegação à vista. A pop estava sempre por perto, mas os arranjos e a produção assumidos em banda deixavam transparecer uma condição nem sempre disfarçável: eram ainda verdes nesta coisa da pop. “Tenho muito carinho pelo meu primeiro disco, é muito autêntico, mas tem essa ingenuidade na composição”, admite Espadinha. “Gosto muito daquelas canções, mas reconheço que às vezes se desviam. A música está pensada mais como uma peça, com várias secções, uma suite, e não tanto como estou a escrever agora.”

Avesso tinha, de facto, essa fragilidade. Num lote de boas canções, que já pouco faziam por esconder a veia cançonetista de Joana (o lado folk, rente a Angel Olsen, ficaria inscrito nas suas colaborações nos álbuns de João Hasselberg), aquilo que se tornava por vezes evidente era o caminho mais longo tomado por alguns temas para chegar de A a B. Nesses momentos, as canções pareciam encontrar pequenos obstáculos que impediam a sua plena explosão. Como se em vez de rebentarem com estrondo, tendo o rastilho certo, se distraíssem com curvas que, no fim de contas, conduziam um pequeno estoiro. “E fiz todos os erros que um principiante faz com um primeiro disco: gastei imenso dinheiro, fui muito ingénua com muitas coisas…”

Talvez por isso, a seguir a Avesso Joana Espadinha virou o jogo e desatou a escrever “canções super pop”. “Demasiado até”, ri-se. “Coisas que eu depois não tinha vontade de cantar, fui ao outro extremo.” Sem essa reacção mais extremada, no entanto, talvez hoje não existisse Leva-me a dançar, notável canção e primeiro single de O Material Tem Sempre Razão, um refrão que provavelmente não se teria atrevido a cantar há alguns anos, cedendo ao previsível receio de que pudesse “ficar piroso ou ser mal interpretado”. Mas foi esse tema que serviu de modelo perfeito para o trabalho com Benjamim. “Como estava receosa da canção”, confessa, “nem tive aquela coisa de posse. Fui ter com ele, levei-lhe a música e foi do género ‘faz o que quiseres com esta que não me importo muito’.” Depois da primeira gravação de Leva-me a dançar, ouviram o resultado e quando olharam um para o outro perceberam que tinham descoberto para onde podiam partir a dois.

Canção bicéfala

Leva-me a dançar pode ser um tema enganador. Quem nunca tenha ouvido falar de Joana Espadinha antes desta canção, quem tenha contactado com a sua voz através do tema de Benjamim (Zero a zero) com que se apresentou no Festival da Canção, quem esteja a par das intenções pop deste seu percurso recente não deixará de se beliscar diante de O Material Tem Sempre Razão. E isto porque Leva-me a dançar é o tema mais desavergonhadamente pop de um álbum que acolhe amiúde uma toada melancólica, que recua em termos sónicos a uma elegância outonal dos anos 70, a um classicismo beatleniano, a uma sugestão de psicadelismo que é mantida sob controlo, sem se espalhar por quantos cantos tenha uma canção.

E é por isso que descobrimos vestígios da pop com tonturas de Melody’s Echo Chamber no tema-título, dos Capitão Fausto em Pensa bem (a que se junta um arpejo de teclado tão-mas-tão Sétima Legião), dos Beatles em Mais uma estrada (cuja sombra de McCartney vai desembocar numa citação final de Hey Jude) ou de Feist em Sem emenda e Contramão. A sombra de Feist é, na verdade, pouco acidental, uma vez que os discos da canadiana fizeram parte da música que todos os dias Benjamim levava para Joana ouvir – “Fiquei completamente apaixonada pelos Fleetwood Mac, que só conhecia por alto”, exemplifica a cantora. “Uma das coisas boas de trabalhar com o Benjamim foi ter conhecido muita música, cada dia algo diferente.” Essa fome de novidade manteve-se, com mergulhos na música dos brasileiros O Terno – cuja marca, assume, ainda se fez sentir sobre um tema do álbum –, dos Beach House ou da discografia antiga de Stevie Wonder.

Se em comum com os Capitão Fausto a cantora terá também um caminho de simplificação, de procura por canções mais redondas, com “refrães mais catchy” e uma depuração absoluta de arranjos – nem uma nota a mais, cada uma a ter de justificar bem a sua presença –, será certamente mais inusitado encontrar em O Material Tem Sempre Razão uma herança da canção portuguesa cujo trilho leva, com toda a certeza, até Lena d’Água. Quando nos chega aos ouvidos o refrão de Qualquer coisa, a voz de Joana Espadinha parece balançar entre o seu registo e a memória quase palpável da ex-cantora dos Salada de Frutas. Na sua editora, a Valentim de Carvalho, essa qualidade de registo associável à canção popular portuguesa acabaria por trazer também à baila o nome de Gabriela Shaaf. “Tomo isso como um elogio tremendo, até porque são referências de cantoras pop, mulheres, portuguesas e não há assim tantas neste estilo de música. Era inevitável que fosse buscar algo aí.”

Essa característica clássica na voz de Joana Espadinha parece encontrar o refrão perfeito em Leva-me a dançar. Não é só a voz soprada, não é apenas a melodia que parece a confirmação de uma canção da pop mais enlevada dos anos 50 que ficara por escrever, mas também aquelas exactas palavras que dizem: “Se o amor é sério leva-me a dançar primeiro.” Reconhecendo que esta é uma letra informada por uma reflexão sobre o papel do romantismo na vida da mulher de hoje, Joana chama-lhe “uma canção bipolar” – tanto aponta para um compromisso que pode parecer fora de estação, quanto acolhe a ideia de que uma relação “séria” deve dar-se a liberdade de pequenos momentos de diversão e de evasão das responsabilidades partilhadas no dia-a-dia.

Tanto Leva-me a dançar quanto O material tem sempre razão inscrevem-se também numa canção feminista que tenta sacudir dos ombros “os rótulos com que as mulheres vivem” – “Aquilo que é suposto sermos ou deixarmos de ser, as expectativas que nos foram impostas, os contos de fadas, as comédias românticas, tudo aquilo que é completamente desligado da realidade mas que faz parte do nosso imaginário do príncipe encantado”, diz. No caso de O material… – expressão que Joana colheu do seu pai – esse conceito aplica-se ainda à ideia de que “sempre que uma pessoa se trai e se compremete com algo que lhe é contrário o corpo (ou a consciência em sua representação) há-de arranjar maneira de lançar um alerta e acusar a falha.

No fundo, tudo isso está presente no percurso de Joana Espadinha até este segundo álbum. Depois de anos a estudar música e a especializar-se no jazz, algo que diz tê-la prejudicado como intérprete, ao torná-la mais racional, tentou recuperar a sua naturalidade e encontrar uma forma menos regrada de fazer música. Joana desligou os filtros. Agora é só ouvi-la.

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