No Jardim Botânico da Ajuda, as árvores ensinam-nos a viajar

No mais antigo jardim botânico do país, cada planta esconde uma história.

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“Tem a certeza que é na Calçada da Ajuda? Olhe que sempre vivi entre Belém e Algés, sou taxista há mais de 30 anos e não sabia que existia aqui um jardim botânico”. É o mais antigo do país, criado há 250 anos, e ainda assim o Jardim Botânico da Ajuda permanece um segredo na cidade, escondido para lá dos muros altos de amarelo desbotado. Vizinho do palácio, mas arredado dos centros turísticos que circundam os outros dois jardins botânicos lisboetas – no Príncipe Real e em Belém – são poucos os alfacinhas que parecem conhecê-lo. E poucos os visitantes com quem nos cruzemos esta manhã, a maioria estrangeiros.

O Jardim Botânico da Ajuda não tem tido uma vida fácil e da mata exótica que habitualmente se cola ao conceito não restam muitos exemplares. Mas o que perde em sombra e exuberância ganha em vistas largas: sobre o rio Tejo, que agora se esconde atrás de uma neblina passageira; e sobre as particularidades de cada espécie e das suas histórias.

É nestas que Susana Neves, especialista em etnobotânica, e Dalila Espírito Santo, agrónoma e directora do jardim há 16 anos, se prendem a cada passo da visita.

Susana escolhe a alameda de jacarandás sobre a balaustrada para início de conversa. “Gosto imenso porque é das poucas árvores cujo nome se diz da mesma maneira em todo o mundo. Vem do tupi-guarani e quer dizer ‘árvore do centro duro’”, conta. A variedade que vemos é a mimosifolia, que dá flores lilases e castanholas. “Se levarmos para casa e esperarmos que ela se abra sozinha, vamos encontrar lá dentro umas sementes muito engraçadas: têm um centro sépia e uma saia à volta que tem um tom lilás muito próximo das flores, mas que muda rapidamente de cor porque oxida.” Os enigmas da Natureza são caprichosos. Apenas se desvendam a quem tiver paciência e atenção. “É isso que as árvores ensinam a um investigador: a esperar.”

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Natural das Américas, o jacarandá é hoje uma árvore comum nos jardins e passeios públicos. “O Brotero [botânico português e director do jardim em 1811] dava sementes de jacarandá a quem quisesse, dizendo que era uma árvore ornamental lindíssima”, recorda Dalila Espírito Santo. “Estou convencida de que a dispersão dos jacarandás em Lisboa começou aqui, com as recomendações dele.” Curiosa coincidência: um dia Susana conheceu um japonês, guia turístico em Lisboa, que às tantas lhe mostrou um desenho: “era um mapa de Lisboa, mas em função da floração dos jacarandás.”

Mais à frente, de volta ao jardim, admiramos as flores rosas da schotia afra, debruçada sobre uma grande estrutura circular em ferro. É o único exemplar presente num jardim botânico na Europa, assegura a directora. Antes, os ramos formavam uma copa até ao chão. “Uma senhora que agora deve estar com os seus 80 anos, e que era filha do chefe dos jardineiros, lembra-se de brincar às escondidas pondo-se debaixo desta árvore.” Da ceiba pentandra, a dois passos, é que não deveria querer aproximar as brincadeiras. O tronco forma uns bicos, “os acúleos”. Por isso, “havia histórias sobre amarrarem os escravos a estas árvores”. Deverá dar flores em Novembro - “parecem as das orquídeas, rosas, enormes, lindas” - e depois os frutos – “parecidos com uma pêra-abacate, que depois secam e estalam”. Lá dentro, descreve Susana, há “uma granada de sumaúma, com aquelas protuberâncias a lembrar um cérebro”. São, na verdade, centenas de pêlos brancos acocorados, a proteger as sementes. Outrora eram utilizados para o enchimento de almofadas e Susana ainda se lembra de ter uma quando era pequena. Em algumas zonas de Portugal Continental, no entanto, eram usados os pêlos dos “foguetes” da taboa, acrescenta Dalila. “É uma planta aquática que está representada ali em baixo, na fonte das 40 bicas, junto aos cavalos-marinhos.” E da qual existe um exemplar no “pântano barroco”, como Dalila apelida o lago central do patamar superior, agora aos nossos pés.

Aproveitamos a deixa para pedir a Dalila que nos apresente o jardim. Está actualmente “dividido em quatro partes principais”: o tabuleiro inferior – um “jardim de buxo, romântico, onde as damas passeavam e os príncipes brincavam”; o patamar superior – a “escola”, com canteiros geométricos onde a colecção botânica se divide pelas diferentes regiões fito-geográficas; uma zona de mata, junto ao portão para a Calçada do Galvão; e o jardim dos aromas, com plantas aromáticas, medicinais, tintureiras e sabonificadoras dispostas em canteiros elevados, acessíveis a invisuais. Foi a “única coisa introduzida na colecção” com o restauro liderado por Cristina Castel-Branco, antiga directora do Jardim Botânico da Ajuda e a principal impulsionadora da recuperação do espaço, em meados dos anos 1990.

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Desenhado pelo naturalista italiano Domenico Vandelli a pedido D. José I, o jardim destinava-se à educação dos netos do rei, o príncipe José, que viria a falecer novo, e o futuro D. João VI, que haveria de abri-lo pela primeira ao público, uma vez por semana, e que mais tarde fundaria o Jardim Botânico no Rio de Janeiro, Brasil. “Dizem todas as crónicas que por ter saudades deste”, recorda Dalila. Integrando o jardim, um museu de história natural, a casa de risco e os laboratórios de química e de física, o complexo constituiu o “primeiro núcleo científico de Lisboa”. E deu, mais tarde, origem à Academia das Ciências, integrando o Instituto Superior de Agronomia desde 1910.

A história do jardim, no entanto, tem conhecido episódios trágicos. Como o saque durante as invasões napoleónicas. O general Junot terá pedido que viessem buscar as colecções de mineralogia, zoologia e botânica que existiam aqui, enviadas por naturalistas das “várias possessões portuguesas”, muitas delas ainda encaixotadas. Diz-se que com o “compadrio” de Vandelli. E ainda hoje estão expostas no Jardin des Plantes. “D. Pedro V, a certa altura, vai a Paris e há um texto onde ele basicamente diz que ‘ao menos estão a salvo’”, conta Susana. A partir daí, o jardim há-de passar por sucessivos períodos de abandono e decadência. Até que, em 1941, um ciclone deitou abaixo muitas das árvores que restavam. “Quando o Vandelli fundou o jardim, [um escrito] refere que chegou a ter aqui cerca de cinco mil exemplares. Neste momento temos 1578”, compara Dalila Espírito Santo. Já é “um bocadinho mais” do que o número que Brotero terá encontrado quando dirigiu o jardim (1330). E certamente mais do que as 120 espécies que persistiam quando foi restaurado, entre 1994 e 1997.

É por isso que, quando Susana pergunta se os gingko biloba que temos à nossa frente são macho ou fêmea, Dalila não pode responder. “Ainda não deu flor, por isso não sabemos. Mas acredito que haja as duas, porque foram plantadas ao mesmo tempo e aquela está mais pequena do que esta.” Diz a teoria que começam a florir aos 20 anos. “Portanto, devia dar este ano, mas ainda não há nada”. E sobre o gingko biloba, espécie do tempo dos dinossauros, conte-se mais duas histórias: foi uma das árvores que sobreviveu ao bombardeamento atómico em Hiroshima e é na forma da sua folha que termina o penteado dos lutadores de sumo. “Prestam o culto a esta árvore pela sua longevidade”, conta Susana.

Sentamo-nos à sombra de uma ficus macrophylla e o relógio parece desacelerar ao ritmo do tique-taque dos pequenos figos castanhos a baterem na terra, perdido na conversa. Ao nosso lado, alunas do ISA andam a recolher os frutos e as folhas do chão. “Suja tudo, principalmente nos canteiros, porque entra em competição com as plantinhas que semeámos”, justifica Dalila. Para onde quer que olhemos, há histórias para contar. Como a dos pavões omnipresentes, alguns com crias pequenas. “D. Maria I era fã de aves exóticas e os pavões deverão ter sido trazidos na altura em que o jardim foi criado”, recorda Dalila. “Agora devem ser uns 16, mas damos pavões a quem quiser, seis chegam perfeitamente.” Ri-se quando conta que devem ter aprendido a cruzar a estrada de geração para geração porque, actualmente, “cumprem as regras de trânsito como ninguém”. Mas comem muitas plantas. Por isso, as mais apetitosas estão cercadas por redes de plástico ao longo do jardim.

Já o dragoeiro à nossa esquerda veio adulto para Portugal. Dalila estima que tenha “perto de 400 anos”. Mas aconteceu-lhe uma “coisa horrível” em 2006, quando um fungo apodreceu parte das raízes e a zona da frente desabou. Era “o maior do país”, agora parece um enfermo dilacerado, suspenso por uma teia de cordas e ferro. Se preferir, desça até ao patamar inferior, onde um dragoeiro mais jovem exibe um chapéu redondo e sublime. “Venho aqui muitas vezes vê-lo, tem uma copa muito densa”, há-de contar Susana quando passamos por ele. Depois, gosta de ir espreitar os branquiquitos ou admirar as iritrinas quando estão em flor. “São de um cor-de-laranja muito intenso”, descreve a especialista em etnobotânica e autora do livro Histórias que fugiram das árvores, cuja apresentação foi neste mesmo jardim.

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No entanto, quando aqui regressa, há-de confessar-nos, é a balaustrada virada ao jardim de buxo e ao Tejo que mais a atrai. Porquê? “Permite-me ter todo o tipo de sonhos”, diz, em tom suave, recuperando um “episódio muito engraçado” que contou há pouco. Em 1784, o padre João Faustino lançou a máquina aeroestática a partir daqui. A história aparece relatada na Gazeta de Lisboa e descreve tudo ao pormenor: como o balão foi feito em papel colorido segundo um modelo francês, como foi enchido, se elevou nos céus e como acabou por cair em Cacilhas. “Quando venho aqui, vejo aquela máquina aeroestática a subir aos céus, os reis a assistirem. Também funciona como uma espécie de impulsionador de sonhos e de ficção.” As plantas de um jardim botânico cumprem muitas funções, da transmissão de conhecimento à preservação das espécies. Mas também permitem-nos “viajar com elas”. No tempo e no espaço.

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