Por uma existência condigna na Venezuela

Os direitos humanos não podem nunca ser reféns de conceções ideológicas, nem instrumentalizados para fins políticos. A Venezuela vive uma crise de direitos humanos.

A crise venezuelana está à vista de todos. O sistema de saúde colapsou, os alimentos escasseiam e assiste-se, com preocupação, à incapacidade de fornecimento contínuo de eletricidade e de água à população. Perante este cenário, há quem questione se, além de um Estado falido, não estaremos no limiar de um Estado falhado (ou em processo de falhanço), incapaz de garantir vários domínios da atividade estadual, tais como os económicos, sociais, de segurança e políticos.

A crise humanitária na Venezuela é de tal modo alarmante que põe em causa o mínimo existencial da população e a fruição dos mais básicos direitos humanos. Vários tribunais constitucionais e tribunais supremos – v.g., na Alemanha, em Portugal, em França, no Brasil, entre tantos outros Estados – de uma leitura combinada dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado social, têm desvendado um novo e autónomo direito social: o ‘direito fundamental a um mínimo existência condigna’. Na maioria dos Estados, este é um direito fundamental não escrito, que a jurisprudência retira da interpretação dos princípios e preceitos constitucionais.

Já no plano internacional geral, podemos encontrar referências expressas à existência condigna. Veja-se, a este propósito, o artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 11.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais. Cumpre frisar que o Estado venezuelano é signatário de ambos os tratados. Concomitantemente e em termos formais, a Constituição venezuelana contém inúmeras referências à dignidade humana (no emprego, na saúde, na educação, na segurança social, etc.) e, no artigo 299.º dispõe que “o regime socioeconómico da República Bolivariana da Venezuela (…) assegura o desenvolvimento humano integral e uma existência digna e proveitosa para a coletividade”.

Perante este contexto legislativo podemos verificar que existe uma inquietante dissociação entre a teoria e a prática dos direitos humanos. Em boa verdade, de nada importará dizer-se que o ser humano é livre e que possui plena autodeterminação, se as condições básicas da sua subsistência não estiverem garantidas. Assim, a existência condigna em sociedade pressupõe um conjunto de bens e serviços fulcrais, tais como a alimentação e vestuário, a saúde, a educação, a habitação, entre outros.

No passado dia 5 de setembro, o Conselho Permanente da Organização de Estados Americanos reuniu, a título de urgência, com o objetivo de discutir a crise migratória venezuelana, sequência da crise humanitária. O êxodo de venezuelanos para os Estados vizinhos, tais como Colômbia, Brasil ou Perú, coloca desafios não despiciendos. Como acautelar que este fluxo de pessoas ocorra de forma organizada e estruturada? Quais os esforços no sentido de evitar situações de escravidão laboral e sexual dos migrantes?

As violações de direitos humanos na Venezuela não podem ser encaradas levianamente. Não se trata aqui de discutir a probidade da orientação política de Nicolás Maduro. Não se pretende igualmente debater se a sua governação é um modelo (im)perfeito de políticas públicas socializantes e coletivistas inspirado na revolução bolivariana de Hugo Chávez.

Os direitos humanos não podem nunca ser reféns de conceções ideológicas, nem instrumentalizados para fins políticos. A Venezuela vive uma crise de direitos humanos. Compete à comunidade internacional denunciar, com veemência, esta situação e tomar as medidas mais adequadas que permitam devolver à população venezuelana o que de mais intrínseco existe em cada ser humano: a dignidade – sem a qual não existe liberdade nem verdadeira igualdade.

Catarina Santos Botelho, Mariana Barbosa e Filipe Pinto da e quipa coordenadora da pós-graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos na Universidade Católica Portuguesa, no Porto 

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