Viajar, aprender, desenhar: o “giro” da ilustradora que “pensa demais”

Há um ano, Luciana Bastos ganhou coragem para mostrar aquilo que sempre sonhou ser. Pegou nas suas ilustrações, improvisou uma loja ambulante numa bicicleta e fez-se às ruas do Porto. A vida, descobriu a artista brasileira, pode ser uma permanente viagem.

A coragem veio num momento inesperado. Luciana Bastos havia terminado uma relação de uma década, perdido a casa e tinha apenas um mês para escrever o último capítulo da sua tese de mestrado. Estava em Portugal há coisa de dois anos e habituara-se a compor o orçamento a vender ilustrações de amigos brasileiros por feirinhas do Porto — mas as suas criações acumulavam-se há anos em diários gráficos dentro de gavetas, demasiado envergonhadas para se fazerem notar. Até que a tempestade se instalou nos seus dias e a determinação surgiu, inesperada e sob rodas. Literalmente. “Foi incrível, mudou a minha vida.”

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Rua das Flores, Porto. O escritório sem tecto de ponto geográfico variável instala-se hoje na movimentada artéria portuense. Luciana Bastos estaciona a sua bicicleta cor de salmão, improvisa um banco na saliência de um edifício e começa a desenhar. Locais e turistas param a observar. Fotografam. Aproximam-se da bike e percorrem as criações da designer gráfica: postais e stickers na parte da frente, fanzines e ilustrações nos cestinhos de trás. Junto ao logótipo do projecto  Giro – Art on Wheels, um recipiente para moedas e a breve explicação em inglês: Contribute with how much you want. Luciana Bastos vende as suas criações na rua — mas num sistema que faz vénia a uma economia diferente, capaz de “tornar a cultura acessível a todos”. Quem passa pode pegar numa das suas ilustrações, contribuindo com aquilo que achar justo (só os originais têm um preço mínimo, sempre baixo).

Há muito que esse desejo de ter uma espécie de loja ambulante ganhara raízes na sua cabeça. Mas o Giro revelou-se mais do que esse mercado sob rodas: foi o início da descoberta de um novo caminho — ainda que, perceba agora, talvez ele estivesse há muito a ser traçado. 

O vício do desenho sempre esteve lá. Nascida em Brasília, Luciana apaixonou-se cedo por lápis e papel. Incentivada pela mãe, perdeu a conta aos diários gráficos preenchidos. E quando a idade das decisões chegou, sabia que o seu futuro estava nas artes. “Aí veio o problema”, recorda, agora de sorriso aberto. Os pais, ambos bancários, preferiam vê-la na moldura de um emprego público. “Há essa cultura em Brasília. Porque é o que dá segurança às pessoas”, justifica para logo de seguida explicar a sua recusa: “Não estaria sendo eu”.

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Com a licenciatura em Artes Plásticas completa, iniciou o seu percurso profissional como designer gráfica numa agência de comunicação. Mas o sonho passava por outras geografias: “Sempre tive vontade de morar fora do Brasil.” Ao conhecer um casal de portugueses e ouvir as histórias felizes da sua orientadora na faculdade, que havia feito doutoramento no Porto, Luciana começou a imaginar-se do outro lado do oceano. E assim aconteceu.

Não volta ao Brasil há três anos, altura em que aterrou em terras lusas. Tão cedo não pensa em regressar, pelo menos de malas feitas. “O Porto tornou-se a minha base”, explica. E o Giro e a sua filosofia uma nova forma de viver. “Além de ser uma maneira de viajar, andar nas ruas é uma bombinha permanente de incentivo e criatividade.”

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No início, o embate com a vergonha e insegurança era grande. Mas à medida que coisas singulares iam acontecendo, outros sentimentos ocorriam. “Conversava muito com pessoas sem-abrigo e era muito especial”, recorda. Depois veio a dança, o teatro, as associações como a Casa Bô, o Compasso, o Rés-da-Rua, a Gazua. Luciana, 31 anos, abre um dos seus diários gráficos para exibir a inspiração vinda de todos os lados: músicos de rua, Pablo (um artista que faz acrobacias numa roda gigante e com quem já viajou), colagens feitas com folhas de árvores, textos, apontamentos em guardanapos de café, bilhetes de comboio e cartões de visita. “Está aqui tudo o que sinto, vejo e penso. Sou uma pessoa que pensa demais. Fico confabulando sozinha.”

Para Luciana Bastos, o Giro não é a garantia de estabilidade financeira — continua a trabalhar em regime freelancer como ilustradora e designer gráfica —, mas é a caução de uma certa felicidade. “Comecei a perceber que era possível viajar sem ter muito dinheiro. Ir parando, vendendo e fazendo dinheiro para continuar”, conta. Faz isso pelas ruas do Porto. E não só. Por estes dias, deve seguir viagem até Salamanca. No início de Outubro, irá até à Polónia uma semana, depois um mês e meio para a Índia (aqui sem bicicleta), a seguir logo se verá. “O lance é não ter muita regra”, sorri para logo deixar uma promessa: “Vou devolver em ilustração tudo o que aprendo.” Afinal, se os dias podem ser um giro vale a pena girar por aí: “Agora percebi que posso viver em viagem e vou continuar.”

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