Câmara de Lisboa, vouchers e livros escolares, o passo que falta

Se o investimento de Medina em manuais não for continuado, a novidade será um presente de Natal e não o início de uma mudança de mentalidade.

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Quando eu for rica, vou fazer um doutoramento sobre a história europeia das políticas públicas de reutilização de manuais escolares nos últimos 150 anos. Para já, tenho de me contentar com o pouco que sei. Que, resumido em 4161 caracteres, é isto:

Estamos décadas atrasados em relação aos países com os quais gostamos de nos comparar para tudo e mais alguma coisa, menos para isto.

Há décadas que os britânicos, alemães, suíços ou franceses têm sistemas de reutilização dos manuais. Isso implica uma visão holística, com decisões, mudanças e acertos.

Nesses países, bem mais ricos do que nós, os livros escolares não têm espaços em branco para os alunos fazerem exercícios — e por isso não são escritos e riscados pelos alunos. São apenas lidos. Em Portugal, as editoras não resistem e incluem sempre um “completa”, “preenche” e “verifica” no manual, quando isso deveria estar confinado aos livros de fichas. Além disso, nos países ricos os livros mal saem da escola — e por isso são poupados (e poupam também as costas dos alunos).

Reutilizar manuais escolares não serve só para as famílias pouparem tempo e dinheiro — o que já não é pouco. Protege o planeta, elimina desperdício, educa as crianças, dá-lhes responsabilidade e transmite-lhes valores de comunidade e defesa do ambiente. Ao mesmo tempo, acaba com uma tarefa repetitiva e desnecessária, que rouba tempo e recursos a governos, escolas e famílias. Que sentido faz os professores, todos os anos, perderem tempo a escolher os manuais a “adoptar” como se se tratasse de júris de prémios de obras inéditas ou críticos dos catálogos da rentrée literária? Que sentido faz os pais andarem horas à procura de livros em bancos de troca que, com voluntarismo e generosidade, professores, auxiliares e pais organizam no fim do ano?

Reutilizar manuais escolares é uma questão ética. Mais tarde ou mais cedo, vamos deixar de os comprar. É simples e inexorável. Com a naturalidade com que passámos a usar cintos de segurança, vamos deixar de pensar nos manuais dos nossos filhos. As crianças vão levantar os livros usados no ano anterior e pronto. As editoras não querem perder este negócio e eu até compreendo que, perante a dificuldade de editar obras inéditas num país onde ninguém lê, elas precisem dessa almofada. Mas como tantos outros negócios, as editoras terão de se adaptar à mudança.

Por ser uma questão ética e civilizacional, não faz sentido que a reutilização dos manuais seja feita em função dos escalões de IRS. Seguindo essa lógica, as famílias de classe média e alta pagariam propinas nas escolas públicas desde o ensino básico.

No pouco que sei e que cabe aqui, ao fim destes primeiros anos de nova política, há escolas onde já há níveis de 70% de reutilização de manuais e há escolas onde há 0%. Estamos a dar os primeiros passos e, sendo uma política que irrita muita gente, é preciso que muitos queiram que ela funcione para ela ser eficaz. Com o tempo, haverá cada vez mais livros em bom estado no fim de cada ano lectivo e o Estado terá de oferecer (e comprar) menos livros novos. Após meses de negociações com o Governo, a Câmara Municipal de Lisboa adoptou este ano a política de gratuitidade e reutilização. Não é apenas mais um convertido. É a capital, e a força simbólica que isso representa não é pequena. A autarquia comprometeu-se em aplicar na cidade os mesmos critérios que o Governo aplica no país: no fim do ano lectivo, os livros são devolvidos à escola, as escolas fazem a triagem, recuperam os livros que estão em boas condições para serem reutilizados no ano seguinte e introduz a informação na plataforma do ministério. A ideia é que, dentro de uns anos, o investimento em livros novos seja residual. O acordo tem uma fragilidade. Não tem que ver com os supostos “vouchers desperdiçados”, pois só há despesa pública no momento em que o voucher é apresentado numa livraria e o livro comprado. O problema é que não há um acordo escrito entre Governo e autarquia, pelo que amanhã outros autarcas podem dizer que a ideia é má e cancelar o processo. Se assim for, este investimento ficará na memória como um presente de Natal e não como o início de uma mudança de mentalidade.

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