Descoberto o desenho mais antigo do mundo

Equipa internacional de cientistas encontrou numa gruta da África do Sul uma pequena rocha onde foram desenhadas nove linhas horizontais e verticais. É quase como se tivesse feito uma hashtag há 73 mil anos.

Fragmento com o desenho mais antigo que se conhece
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Fragmento com o desenho mais antigo que se conhece Craig Foster/Reuters
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O desenho é composto por nove linhas horizontais e verticais que se cruzam D'Errico/Henshilwood/Nature

Há já algum tempo que Luca Pollarolo estava a analisar milhares de peças recolhidas de uma gruta na África do Sul. Mas, de repente, encontrou uma lasca com cerca de quatro centímetros de comprimento que era diferente. “Nem queria acreditar naquilo que tinha nas minhas mãos. Foi mesmo entusiasmante! Percebi que tinha feito uma grande descoberta”, recorda. Como tal, o arqueólogo contactou outros cientistas para saber se partilhavam da mesma opinião. Depois de várias análises, concluiu-se que essa pequena rocha com 73 mil anos tinha o desenho mais antigo do mundo que se conhece até ao momento. Num artigo científico na última edição da revista Nature, que tem como um dos autores Luca Pollarolo (da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul), revela-se que esse desenho foi feito pelo homem moderno (Homo sapiens) e – até agora – é considerado abstracto.

A lasca com o desenho foi encontrada na gruta de Blombos. Situada no Sul da África do Sul, a cerca de 300 quilómetros a leste da Cidade do Cabo, esta gruta tem recebido escavações arqueológicas desde 1991 e tem mostrado ter provas muito antigas de actividades culturais do humano moderno. Lá têm-se recolhido milhares de artefactos com entre 70 mil e 100 mil anos como conchas ornamentais e fragmentos de ocre com gravuras.

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Investigadores na gruta de Blombos, na África do Sul, onde foi encontrado o desenho Magnus M. Haaland/Reuters

Mas concentremo-nos (por enquanto) no desenho encontrado nessa gruta e descoberto, em 2015, entre outras peças analisadas por Luca Pollarolo. Num pequeno fragmento de rocha siliciosa, há nove linhas verticais e horizontais – seis dessas linhas são cruzadas por outras três, o que se assemelha a uma hashtag. Esse símbolo terá sido feito com um “lápis” de ocre vermelho com entre um e três milímetros de espessura. A lasca onde está esse desenho tem 38,6 milímetros de comprimento, 12,8 milímetros de espessura e 15,4 milímetros de altura. E como as extremidades do fragmento têm cortes abruptos, pensa-se que esse desenho faria parte de uma superfície maior composta por um símbolo mais complexo.

Esta equipa internacional de cientistas considera que este desenho é abstracto. “Dizemos que é abstracto porque não representa nada figurativo (como um animal, por exemplo)”, explica ao PÚBLICO Karen van Niekerk, da Universidade de Bergen (Noruega) e outra das autoras do trabalho. “Contudo, pode ter sido usado como um símbolo para algo mais figurativo. Mas não o conseguimos provar nesta fase.”

Agora, a equipa revela também que o mais desafiante foi provar que as linhas tinham sido feitas por humanos. E o que fizeram os cientistas para o confirmar? Primeiro, reproduziram as mesmas linhas do desenho com técnicas diferentes. Essas reproduções foram feitas com fragmentos de ocre afiados e também com diluições de ocre em pó que foram aplicadas com pincéis. Depois, através de técnicas de microscopia ou químicas, comparam os novos desenhos com o antigo. No final, confirmaram que o desenho na lasca encontrada na gruta de Blombos tinha sido feito deliberadamente pelos humanos. 

“Soubemos assim que as linhas na pedra não eram naturais”, frisa Karen van Niekerk. Além disso, acrescenta: “Encontrámos o desenho numa camada que tinha muitos outros artefactos feitos pelos humanos como conchas perfuradas, gravuras em ocre ou ferramentas de pedra e osso. Também descobrimos vestígios humanos, nomeadamente dentes, na gruta. Não temos dúvida que o desenho foi feito por um humano, o Homo sapiens.

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Gruta de Blombos, na África do Sul Magnus Haaland/Reuters

Como o desenho foi encontrado num estrato com 73 mil anos, isso faz dele o mais antigo do mundo que se conhece até agora. “Esta notável descoberta precede os anteriores desenhos figurativos e abstractos mais antigos, pelo menos, 30 mil anos”, lê-se no artigo. Até agora, os desenhos mais antigos abstractos ou figurativos vinham de sítios arqueológicos mais recentes como das grutas de Chauvet Pont d’Arc (França), de El Castillo (Espanha), Apollo 11 (Namíbia) e de Maros (Indonésia). Alguns deles tinham cerca de 42 mil anos.

Gravura com o mesmo símbolo

Para que não haja dúvidas, Karen van Niekerk refere que um desenho é diferente de uma pintura e de uma gravura. No caso deste desenho, usou-se uma peça de ocre para desenhar linhas numa pedra. “Já a gravura é um método totalmente diferente, que implica usar uma pedra para fazer cortes nalguma coisa”, explica a cientista.

Na gruta de Blombos foram encontradas algumas gravuras com um padrão semelhante ao do desenho e também com mais de 70 mil anos. Para a equipa, isto demonstra que, há cerca de 70 mil anos, os humanos modernos na África do Sul já faziam sinais semelhantes em diferentes materiais, o que “apoia a ideia que essas marcas tinham uma função simbólica”, lê-se num comunicado sobre o trabalho. 

Mas a gravura mais antiga que se conhece é um ziguezague esculpido numa concha que foi encontrada no sítio paleoantropológico de Trinil (na Indonésia) e num estrato com 540 mil anos, segundo o comunicado.

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Gravura encontrada na mesma gruta e com um símbolo parecido com o do desenho D'Errico/Henshilwood/Nature

Quanto às pinturas, revelou-se este ano na revista Science que os neandertais (também humanos) foram os primeiros artistas a pintar grutas. Nesse estudo, apresentavam-se provas fortes – através da datação de pinturas rupestres em três grutas em Espanha – que esses humanos pintavam intencionalmente grutas há 65 mil anos.

Concluiu-se assim que os neandertais já desenvolviam esta actividade mesmo antes dos humanos modernos. Afinal, estas pinturas ultrapassaram as de Chauvet Pont d’Arc com cerca de 32 mil e as de várias grutas da ilha de Celebes, na Indonésia, com 40 mil anos.

Mesmo assim, Karen van Niekerk salienta que, por agora, a sua equipa tem hesitado em considerar o desenho descoberto na África do Sul como arte. E resume tudo o que, por agora, se sabe sobre ele: “É definitivamente um desenho abstracto, temos quase a certeza que tinha algum significado para o criador e, provavelmente, formava uma parte de um sistema simbólico comum compreendido por outras pessoas do seu grupo.” Talvez um dia se saiba o que esta hashtag com 73 mil anos representa.

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