Contra-revolução autoritária: Brasil alerta máximo

O Estado brasileiro está muito fragilizado e o sistema judiciário muito politizado, mas mantém-se silencioso sobre os apelos ao ódio e à violência. As Forças Armadas intervêm cada vez mais no debate político e há uma elite disposta a tudo para se manter no poder.

O esfaqueamento de Jair Bolsonaro, candidato da extrema-direita militar, é mais um alerta para as gravíssimas ameaças à democracia, num quadro de contra-revolução autoritária e nacionalista que põe em perigo a liberdade.

O atentado contra Bolsonaro não foi montado pelo seu partido, e as teorias conspirativas do próprio e dos seus adversários só servem para ocultar o proveito que o candidato pretende tirar dele. O incêndio do Reichstag, acto individual ou inventona Nazi, serviu os objectivos de Hitler. Vivemos o século XXI como se tivéssemos esquecido o século XX e as suas trágicas lições.

A guerra civil fria que polariza o país desde a eleição de 2014, agravada pelo impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula, líder das intenções de voto, está a ganhar contornos cada vez mais violentos.

Dias antes de ser esfaqueado, Bolsonaro tinha declarado no Acre que iria fuzilar todos os petralhas (ou seja, os políticos do PT). Num ambiente em que os discursos de ódio de Bolsonaro se multiplicavam, a caravana eleitoral de Lula foi baleada, Marielle Franco foi assassinada e refugiados venezuelanos atacados.

Como noutros países democráticos, a via da extrema-direita para o poder não passa pelo golpe militar, mas pelos actos eleitorais, como na Áustria e na Itália. Instalada no poder, sozinha ou em coligação, vai paulatinamente destruindo as liberdades públicas, o Estado de direito e a convivência intercultural, como fez o PIS na Polónia, ou o Fidesz de Viktor Orbán na Hungria. É o que Trump gostaria de fazer nos Estados Unidos, mas tem sido impedido pela independência das instituições e pela sociedade civil americana. No Brasil, porém, os contrapoderes são mais frágeis e uma vitória de Bolsonaro significaria um regresso do autoritarismo militar.

O que a extrema-direita odeia não são as eleições, pelo menos enquanto estão na oposição, mas a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Esses valores fundamentais são apontados como responsáveis pela decadência da sociedade e a eles contrapõem o nacionalismo e a superioridade étnica. Bolsonaro, que é quem de forma mais transparente assume a natureza neofascista da sua ideologia, elogia a ditadura militar e expressa, sem pudor, o ódio e desprezo pelos direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros e dos emigrantes, a quem chamou “escória do mundo”.

Perante a gravidade da situação, como devem reagir os democratas?

Alguns, como se viu com o debate sobre o convite a Marine Le Pen para participar na Web Summit, em Lisboa, defendem a via do diálogo com a extrema-direita. Há quem acuse os que se opõem a esse diálogo de incoerência, pois não criticariam com o mesmo afinco os regimes totalitários de esquerda. Esquecem-se que a guerra fria acabou há quase 30 anos e que a hipótese de tomada de poder pelos comunistas é nula enquanto a da extrema-direita é bem real. Esquecem-se do grave erro da social-democracia e dos comunistas alemães, quando, perante a ameaça do nazismo, continuaram a ver-se como inimigos. Na Europa, a incoerência perante a extrema-direita está bem patente no Partido Popular Europeu, que mantém o Fidesz e o PIS no seu seio (sem que o PSD e o CDS clarifiquem a sua posição).

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Apoiantes de Bolsonaro, junto ao hospital onde está internado Nacho Doce/REUTERS

No Brasil, apoiantes de Bolsonaro, mas também de outras forças que se auto-intitulam liberais, classificam de comunista o Partido dos Trabalhadores. Mas o PT é um partido social-democrata de esquerda, que governou, apesar dos erros graves, sem pôr em causa a economia do mercado, tendo uma política de distribuição de riqueza para enfrentar a grave dívida social do Brasil. Maduro e Chávez estão muito mais perto do caudilhismo militar latino-americano que inspira Bolsonaro do que de Lula.

Para combater a extrema-direita é fundamental aplicar a lei: os apelos ao ódio e a propagação do racismo são crime. Para isso é preciso preservar o Estado de Direito e dar-lhe os meios para agir. Na Europa nem sempre tem sido feito assim, como se vê na lentidão com que as instituições europeias têm agido contra os governos da Hungria e da Polónia.

No Brasil a situação é particularmente perigosa porque o Estado está muito fragilizado e com um judiciário politizado, mas silencioso sobre os apelos ao ódio e à violência, as Forças Armadas intervêm cada vez mais no debate político e há uma elite pronta a tudo para se manter no poder.

Não basta, no entanto, defender as liberdades e combater o racismo.

Para ganharem eleições, os partidos democráticos têm de enfrentar as graves distorções do sistema económico e financeiro e as gritantes desigualdades que provocam, o que explica a indignação das classes médias e a sua adesão a propostas demagógicas dos populistas. Para derrotar a extrema-direita é imperioso não só que a direita liberal supere a sua incoerência ética, mas também que a esquerda democrática supere a sua incoerência social.

A situação no Brasil é particularmente grave e deve ser vista como mais um alerta para a necessidade de travar os avanços da contra-revolução autoritária, o que só será possível assumindo que o risco é real e mobilizando a sociedade, sem sectarismo ideológico, para o conter.

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