Para que lado pende a balança no julgamento da Esquadra de Alfragide?

Depois de seis sessões, os 17 agentes foram ouvidos mas apenas um dos seis jovens da Cova da Moura alegadamente vítima de racismo e tortura testemunhou. O PÚBLICO recorda alguns momentos.

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Dezassete polícias foram a tribunal de Sintra para julgamento que começou a 22 de Maio LUSA/MIGUEL A. LOPES

Dois meses depois de ter sido interrompido por causa das férias judiciais, o julgamento dos 17 agentes da esquadra de Alfragide acusados de tortura e racismo a seis jovens da Cova da Moura retoma esta terça-feira no Tribunal de Sintra. Quando marcou as datas destas próximas sessões a juíza referiu que faltavam ouvir cerca de 100 pessoas. A perspectiva é que as alegações finais aconteçam ainda este ano.

Os 17 arguidos já foram todos ouvidos nas primeiras quatro sessões; três vítimas testemunharam nas duas últimas, e apenas uma das que está no grupo dos seis jovens alegadamente vítima de racismo e tortura - Bruno Lopes — foi inquirido durante três horas. Será que já se pode tirar alguma conclusão sobre para que lado penderá a balança?

Falsas declarações

Recordando, a acusação do MP divide-se em dois momentos: um primeiro, em que a 5 de Fevereiro de 2015 uma equipa da PSP vai à Cova da Moura fazer patrulhamento e detém Bruno Lopes, alegando que este tinha atirado pedras à carrinha da polícia — aí, um agente terá disparado dois tiros e atingido duas moradoras; um segundo momento, quando amigos deste jovem, entre eles membros do Moinho da Juventude, instituição galardoada com prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República, se dirigem à esquadra para pedir esclarecimentos mas acabam detidos e acusados de invasão.

O último dia de julgamento terminou com os advogados dos agentes da PSP a pedirem que fossem extraídas certidões das declarações das testemunhas para abrir processos-crime por “falsas declarações”. Jailza Sousa, Neuza Correia e Bruno Lopes contaram as suas versões do que aconteceu na Cova da Moura situando-o num local diferente do que foi apontado pelos agentes: Jailza Sousa falou do tiro de uma shotgun, disparado por um agente, que lhe acertou no ombro enquanto estava à varanda de sua casa; deu a sua versão sobre a detenção de Bruno Lopes, algo que observou da janela; Bruno Lopes relatou esse momento em que negou ter resistido ou atirado qualquer pedra e o momento depois na esquadra de Alfragide.

Já Neuza Correia, a última testemunha, referiu, com algumas hesitações, que presenciou a detenção, ouviu o tiro e fugiu para uma garagem. O seu depoimento apresentou fragilidades: disse ter visto quatro polícias com caçadeira (o MP só refere um agente a ser o autor dos disparos); referiu no tribunal que tinha ido trabalhar depois do episódio mas à PJ dissera que tinha ido a um hipermercado com a irmã e uma amiga. As suas declarações levaram a juíza Ester Pacheco à impaciência: “Organize-se lá”. Também o Procurador do Ministério Público Manuel das Dores mostrou irritação - por exemplo, perguntou quantos polícias tinha visto naquele episódio que se passara há três anos, ela hesitou, ele perguntou de novo: “Três, quatro, cinco, seis? Eu não estava lá!”, afirmou já num tom de voz mais brusco.

Desconfiança

A descrição de Jailza Sousa gerou desconfiança à juíza, nomeadamente quando contou que depois do episódio foi resgatar à rua cartuchos que foram disparados da shotgun do agente. “Não há possibilidade, até por sugestão de terceiros e até da sua advogada de, no local, procurar outras munições ou quaisquer munições e haver alguma confusão nessa recolha, isto é, ter recolhido outras munições que não aquela?”, perguntou a juíza. E comentou depois: “Estou a tentar pôr-me no seu lugar e já tenho alguns anos de crime. Porque é que não chamou o 112 e a sua preocupação principal é uma atitude inteligente, mas não é comum? Ninguém está a dizer que não foi baleada. Mas tenho que lhe perguntar: não poderá haver alguma confusão da sua parte, não poderá ter apanhado isto noutra ocasião?” 

Não foi apenas o depoimento de Jailza Sousa ou Neuza Correia que gerou desconfiança a Ester Pacheco. A Bruno Lopes, que identificou “o agente da shotgun” e outro que lhe terá batido mais tarde na esquadra, a juíza perguntou a dada altura: “Isto foi no dia 5 de Fevereiro, não é outro episódio? E agridem-no ao pontapé, com aquelas botas e só tem uma ferida no nariz?”. Ao que ele responde. “Mas tinha hematomas, estava todo inchado nas costas, tinha o corpo todo danificado”.

Depois de a vítima ter feito uma descrição das agressões, Ester Pacheco afirma: “Algumas perguntas vão ser desagradáveis mas eu tenho que perceber o que é que se passa: porque é que uma pessoa que é maltratada numa carrinha, é pontapeada na esquadra, o stress está lá em cima, tem sono? Não tem dores? Onde é que há margem para o sono?” Sem hesitar, Bruno Lopes respondeu que tinha dormido pouco na noite anterior. “Para ser sincero, estava cheio de medo”, disse.

"Ó sótor!"

Noutros momentos, a juíza chegou mesmo a irritar-se, por exemplo, com um dos advogados das vítimas, José Semedo Fernandes. Na acusação do MP há a descrição de uma agente – que entretanto foi despronunciada – a limpar o chão, com uma esfregona, para ocultar vestígios de sangue. Alguns agentes, face a perguntas dos seus advogados, tinham afirmado que naquela esquadra não havia produtos de limpeza, que estes se encontravam guardados na esquadra em frente.

Quando outra agente, Juliana Batista, estava a prestar depoimento, o advogado perguntou-lhe como é que naquela esquadra se limpa algo numa situação corriqueira. A juíza interrompe: “Mas porque é que esta senhora em especial sabe responder como é que se limpam as situações corriqueiras, ó sótor!? Não é por ser uma senhora, pois não?” O advogado lembrou o episódio descrito na acusação e explicou que foi por isso que fez a pergunta.

Cenário dantesco

Sessões antes, Ester Pacheco também se inquietou com depoimentos de alguns agentes. Logo no primeiro dia pediu ao agente João Nunes, autor dos disparos, que explicasse o que teria motivado seis jovens a invadir uma esquadra, ao que ele respondeu que “o ódio e confrontação que existe é grande”, mas a juíza comentou que era preciso serem heróis para o tentarem. Ao primeiro arguido a ser ouvido, André Castro e Silva – que disse que “uns 15 indivíduos” tentaram invadir a esquadra –a juíza questionou: “Que hipótese é que um grupo de 15 pessoas pode ter contra um efectivo de uma esquadra? É desproporcional. Está perdido à partida. Não conheço nenhum caso.”  

Nessa sessão, a juíza afirmou que aquilo que o despacho de pronúncia descreve é “dantesco”. E depois de ler as declarações do agente André Castro e Silva que foram reproduzidas no despacho, de ódio racial, disse que a serem verdade “seria algo absolutamente infeliz e catastrófico”. O agente negou ter proferido tais palavras.

Condescendência

Porém, em vários momentos a juíza também mostrou alguma condescendência pelos agentes. Por exemplo, a forma como foi feito o depoimento do agente Marco Monteiro levou-a a comentar, sorrindo, um pedido da sua advogada para que explicasse melhor: “Tem que dar mais emoção ao seu relato!"

Várias vezes a magistrada respondeu por quem estava a testemunhar. Quando a advogada das vítimas perguntou a um polícia, Fábio Moura, quantos indivíduos terão participado na “alegada invasão” da esquadra, a juíza interrompeu, virando-se para o agente: “Parece-me que não é capaz de dizer quantos indivíduos é que eram, pois não?”

A presidente tem sido a mais interventiva, embora o juiz Paulo Cunha já tenha colocado algumas perguntas, nomeadamente para questionar porque é que, se tinha existido uma invasão da esquadra, os agentes não chamaram reforços. Quem ainda não fez qualquer pergunta foi o terceiro elemento do colectivo, a juíza Susana Madeira.

Tratamento diferente?

Terá este colectivo mais simpatia por uma das partes?

Isabel Gomes da Silva, uma das advogadas dos agentes, não se pronuncia sobre o processo: “O tribunal é soberano e tem tomado as decisões que considera serem pertinentes”. Mas afirma: “Aquilo que temos vindo a dizer é que há um desfasamento muito grande entre o que consta da acusação e a verdade dos factos. Os arguidos falaram e esclareceram a verdade. Todos explicaram o que se passou, a verdade está a vir ao de cima. A prova está a ser produzida, as contradições são imensas”.

Também Lúcia Gomes, advogada mandatária dos ofendidos, refere que há muitas contradições e incongruências nos depoimentos dos polícias. Afirma também que “há a sensação de as vítimas serem tratadas de forma diferente”.

Apesar de reconhecer que é necessário “saber exactamente o que aconteceu e sustentar todos os factos” e que esse “esforço está a ser feito” pelo colectivo e pelo MP, a advogada afirma: “As vítimas foram interrogadas durante três horas seguidas, coisa que não aconteceu a nenhum polícia. Frequentemente a juíza deixa os advogados dos polícias usar estratégias de intimidação” – dá como exemplo o facto de terem anunciado processos-crime ás testemunhas por falsas declarações.

Justifica a “sensação” de desigualdade de tratamento: “O facto de a Jailza ter quebrado a chorar no julgamento demonstra o ambiente que se vive. Ela é confrontada com factos como se estivesse a mentir, o que não aconteceu com os arguidos. Ainda não perceberam que a Cova da Moura não é Bagdad, não há tiroteios todos os dias e as pessoas estavam a temer pelas suas vidas. É normal que as coisas estejam confusas e que numa situação de pânico não estejam atentas a todos os detalhes – não se pode tratar as pessoas como se aquilo fosse o dia-a-dia delas”, defende.

Fundamental será ouvir as restantes vítimas directas, afirma. Isso “vai ditar o rumo do resto do julgamento”: “A descrição e verdade que trarão consigo será uma prova muito forte a ter em conta para além das que já foram documentadas.”

Em Julho, o MP pediu que as seis vítimas testemunhassem sem a presença dos agentes para não as intimidar – o procurador evocou o estatuto de “vítimas especialmente vulneráveis” para fazer este requerimento já que os arguidos estão acusados da prática de um crime violento que prevê esta hipótese.

Na altura os seus advogados opuseram-se, dizendo que isso iria quebrar o princípio da presunção da inocência. Isabel Gomes da Silva admite a possibilidade de os agentes voltarem ao tribunal quando já o puderem fazer - mas ainda não foi tomada uma decisão pública.

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