Irá Trump descobrir o autor da carta anónima que o critica?

Se Trump leu Nabokov's Favourite Word Is Mauve, de Ben Blatt, o autor será descoberto — e despedido — em dois tempos.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Não sei o que os historiadores vão estudar sobre Donald Trump daqui a 175 anos, mas ao ler o texto anónimo do alto funcionário da Administração norte-americana que anuncia uma “resistência tranquila” ao Presidente fiquei com a certeza de que o futuro nos trará bons livros.

O texto anónimo, espécie de carta aberta aos americanos, tem como título “Eu faço parte da resistência dentro da Administração Trump” e é interessante porque o autor — ou autora ou autores — parece ser conservador e do Partido Republicano. “A nossa não é a popular resistência da esquerda”, clarifica no início. “Queremos que esta Administração tenha sucesso e pensamos que muitas das suas polícias públicas já tornaram a América mais segura e mais próspera.” O problema é que, com o seu estilo “impetuoso, conflituoso, mesquinho e ineficaz”, Trump está a “fazer mal à saúde da nossa república”. O texto é bom do princípio ao fim e tem muitas imagens fortes. Diz que “a raiz do problema é a amoralidade do Presidente”; que “para além do marketing maciço da ideia de que os jornalistas são ‘o inimigo do povo’, os impulsos do Presidente são anticomércio e antidemocracia”; que em privado, altos funcionários falam “da incredulidade que sentem, todos os dias, ao ouvir os comentários” de Trump; que “há adultos em casa” e que “nós temos plena consciência do que está a acontecer”. A imagem mais forte está no fim: “A maior preocupação não é sobre o que o Sr. Trump fez à presidência, mas sobre o que nós, como nação, permitimos que ele nos fizesse a nós. Com ele, fomos ao fundo e deixámos que o nosso discurso perdesse toda a urbanidade.”

Se Trump leu Nabokov's Favourite Word Is Mauve, de Ben Blatt (Londres, Simon & Schuster, 2017), o autor será descoberto — e despedido — em dois tempos.

Conta Ben Blatt que durante 175 anos os historiadores discutiram sobre a autoria de 12 dos 85 textos dos Federalist Papers, documentos fundadores da democracia dos EUA. Era sabido que o conjunto tinha sido escrito por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, mas não quem é que tinha escrito cada um deles.

Durante anos, os três “pais fundadores” foram discretos sobre a questão da autoria, mas em 1804, pouco antes de morrer num duelo, Hamilton enviou a um amigo uma lista dos títulos dos Federalist Papers com a indicação da autoria de cada ensaio. Doze dos textos que identificava como “seus” tinham sido reclamados por Madison. O debate durou mais 150 anos.

A resposta surgiu em 1963 e foi dada por Frederick Mosteller, da Universidade de Harvard, e David Wallace, da Universidade de Chicago. “Ao contrário de muitos investigadores que tinham tentado resolver o mistério, Mosteller e Wallace não eram historiadores. Eram especialistas em estatística.”

Pioneiros na medição da frequência e probabilidade das palavras — que em parte hoje se faz em segundos no Word —, Mosteller e Wallace contaram à mão várias palavras banais à procura de estilos. “Nos Federalist Papers, Madison usou a palavra whilst em mais de metade dos textos nos quais a sua autoria tinha sido confirmada — mas não usou uma única vez a palavra while”, um sinónimo. “Hamilton, por outro lado, usou a palavra while num terço dos seus textos, mas nunca usou whilst.” O mesmo com also (que Madison usa duas vezes mais do que Hamilton) ou according (que Hamilton usa muito mais do que Madison). Através deste método, Mosteller e Wallace concluíram que, “dos 12 ensaios cuja autoria estava em disputa, Madison era o autor de todos”.

A certa altura, Ben Blatt puxa o exemplo para a actualidade e escreve que durante anos o desafio foi o equivalente a descobrir a autoria de “um editorial anónimo do New York Times escrito por Barack Obama, Hillary Clinton ou Bernie Sanders, ou um manifesto escrito por George W. Bush, John McCain ou Donald Trump. Todos vêm do mesmo lado, mas não são iguais”. A resposta estava escondida nas palavras — “para a encontrar, os investigadores não precisavam de leitura minuciosa, mas de uma contagem minuciosa”.

Sabendo isto — e reconhecendo a importância da “resistência tranquila” dentro do Governo americano —, espero que o texto anónimo agora publicado contra Trump não tenha um autor mas vários. Se assim for, e se todos tiverem escrito, as pegadas do estilo poderão ter sido apagadas e a resistência interna ganhará força.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários