Ninguém manda nas milícias que combatem pelo controlo de Trípoli

Grupos armados que se pensava estarem ao lado do governo reconhecido internacionalmente espalham agora o caos nas ruas da capital da Líbia. São poucos os diplomatas disponíveis para tentar negociar uma trégua.

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Um rocket caiu na zona onde residem deslocados do conflito na capital Reuters

Era uma tempestade à espera de acontecer. A Líbia não conhece a paz desde o derrube de Muammar Khadafi, em 2011: dois governos apoiados por milícias dizem controlar diferentes partes do país; há milícias que não respondem a nenhuma destas autoridades e o Daesh ocupou partes do território. O caos instalou-se agora em Trípoli, com grupos armados a disputarem o controlo da capital em confrontos que já fizeram pelo menos 47 mortos e 129 feridos, muitos deles civis.

Os habitantes descrevem uma cidade entregue à anarquia, com lojas e stands de carros pilhados. Há cortes de electricidade constantes e desde terça-feira o Facebook, por onde muitos líbios se informam, foi bloqueado na cidade. Muita gente permanece escondida em casa enquanto outros formam longas filas nos bancos para levantar todo o seu dinheiro – ainda há de tudo à venda, mas os preços da comida subiram muito em poucos dias.

O único aeroporto internacional foi encerrado depois da queda de rockets nas imediações. A fuga de 400 prisioneiros da cadeia de Ain Zara só ajudou à desordem. Segundo o jornal The Guardian, os detidos estavam aterrorizados com os combates em redor da prisão – são os piores em quatro anos nas ruas da capital.

“Desde o início dos combates [tudo começou a 27 de Agosto, seguindo-se uma trégua negociada pela ONU e rapidamente quebrada] que muitos civis foram mortos com a queda de rockets em zonas densamente povoadas”, diz o correspondente da televisão Al-Jazira, Mahmoud Abdelwahed. “Muitas pessoas aqui estão a culpar o Governo de Acordo Nacional por não fazer o suficiente para pôr fim ao conflito.”

Em confronto estão essencialmente as milícias que formam o “cartel de Trípoli” e, em teoria, respondem ao Governo de Acordo Nacional (GAN), reconhecido internacionalmente, e a chamada Sétima Brigada (ou Kanyat), uma poderosa milícia da cidade de Tarhuna (é o único grupo armado que controla uma cidade inteira), à qual se juntaram combatentes das regiões de Misurata e Zintan.

A Kanyat, que agora controla o aeroporto internacional, anunciou que com este assalto visa “limpar Trípoli de milícias corruptas que usam a sua influência para conseguir créditos bancários no valor de milhões de dólares enquanto as pessoas comuns dormem na rua à porta de bancos para conseguirem alguns dinares”.

Uma parte do bolo

A verdade é que o “cartel de Trípoli” controla todas as actividades económicas da cidade e a exibição pública de luxo por parte de alguns dos seus comandantes começou a ser conhecida noutros pontos do país. “Nos últimos anos as milícias de Trípoli tinham o governo no bolso e dispunham de todos os recursos da capital. Agora, outras milícias decidiram reclamar uma parte do bolo”, resumiu ao El País um jornalista líbio.

“O que aconteceu é que há seis ou sete meses Zintan, Misurata, Tarhuna e Tajura formaram uma aliança, estavam a planear atacar Trípoli há muito tempo”, explica Tarek Megerisi, analista político e membro de vários think tanks internacionais onde se dedica a acompanhar a realidade líbia.

O que estes confrontos vêm sublinhar de forma muito evidente é que o GAN não tem controlo efectivo sobre nenhuma das milícias que a ele se aliaram. “Toda a gente está sob o governo do GNA porque os ministérios do Interior e da Defesa pagam salários, mas ninguém obedece às suas ordens”, descreve Megerisi, entrevistado pela Al-Jazira.

Para se compreender até que ponto chega o absurdo do caos líbio é preciso ter em conta que os diferentes grupos armados em confronto em Trípoli são todos aliados do GNA e deveriam, em princípio, defender os seus interesses – mas enquanto as milícias que já estavam em Trípoli respondem ao Ministério do Interior, a Sétima Brigada depende, em teoria, do Ministério da Defesa.

Salários pagos

Nos primeiros dias de combates, o Conselho Presidencial do GNA descreveu os membros da Sétima Brigada como “fora da lei”, enquanto o seu chefe do Estado-maior, Abderrahmane Twil, afirmava não saber quem tinha ordenado a esta milícia o ataque sobre Trípoli, negando que pertença ao Estado.

O primeiro-ministro do GNA, Fayez al-Sarraj, assegurava em simultâneo que apesar dos ordenados destes combatentes continuarem a ser pagos, a Sétima Brigada já não responde Estado desde Abril. Um responsável do grupo armado afirma ter recebido entretanto ofertas para altos cargos em troca de conseguir o fim dos confrontos.

Trípoli já não era campo de batalha há bastante tempo, mas a violência nunca deixou de ser quotidiana na Líbia e qualquer acalmia é frágil. Para além dos dois governos, o GNA, de Fayez al-Sarraj, e o Parlamento dos Representantes, liderado pelo general Khalifa Haftar, que domina a Cirenaica (Leste do país) e a principal bacia do petróleo líbio, há ainda a ameaça do Daesh que os EUA combatem no terreno. Aliás, o Pentágono admite retirar as forças especiais que mantém no país, escreve o diário New York Times.

Sem capacidade para pôr fim aos caos, o GNA declarou o estado de emergência, justificado com a necessidade de “proteger civis, propriedades públicas e privadas e instituições vitais”.

Com muito poucas embaixadas em Trípoli – a maioria saiu para Tunes durante os confrontos de 2014 –, não há grandes opções diplomáticas para tentar negociar uma trégua que ponha fim à violência na capital. As Nações Unidas anunciaram na segunda-feira que estavam a tentar reunir as partes para conversações de paz já na terça, sem adiantarem que grupos tinham sido convidados ou poderiam estar presentes. De Trípoli só chegaram notícias de mais confrontos.

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