O nosso corpo é aquilo que quisermos

Este domingo, em Serralves, vamos ver a artista e compositora Fatima Al Qadiri como nunca a vimos antes. No programa O Museu como Performance, apresenta Shaneera: o disco, a performance, a personagem. Uma party animal hipermaquilhada, através da qual questiona a performatividade de género e celebra a liberdade sexual.

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Foi no mínimo surpreendente, no máximo muito, muito bizarro, perceber que aquela pessoa hipermaquilhada na capa do último disco de Fatima Al Qadiri era a própria Fatima Al Qadiri. Batom amarelo-laranja, sombra prateada aplicada sem moderação, brilhantes do pescoço até à roupa. Olhar matador. Nunca a tínhamos visto assim, nunca a tínhamos sequer imaginado assim. Ela, provavelmente, também não. “É uma forma de extrema de feminilidade que eu evitei durante toda a minha vida”, diz ao Ípsilon a compositora, produtora de música electrónica e artista visual nascida no Senegal e criada no Kuwait, actualmente a viver em Berlim. “Gosto de vestir roupas de homem. Uso batom duas vezes por ano, máximo dos máximos [risos]. Foi uma transformação completa para mim.”

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“É uma forma extrema de feminilidade que eu evitei durante toda a minha vida”, diz a compositora, produtora de música electrónica e artista visual nascida no Senegal e criada no Kuwait dom smith

Esta transformação tem um nome: Shaneera, que é simultaneamente o alter ego femme diabólico e extravagante de Fatima Al Qadiri e o título do seu mais recente EP, lançado em 2017 pela Hyperdub, editora de Kode9 que alberga outros músicos altamente recomendáveis, como Burial, Laurel Halo e Jessy Lanza. É com este disco e com esta persona que a artista se apresenta no auditório do Museu de Serralves, este domingo às 22h30, no encerramento da quarta edição do programa O Museu como Performance. Vai ser muito diferente da sua última passagem por Portugal, em 2016, no Festival Neopop. Porque as coisas estão diferentes. Com este trabalho, Fatima Al Qadiri viu-se “pela primeira vez” como uma performer. “Sempre me vi enquanto compositora, nos bastidores. Agora estou a actuar, estou em palco. Foi preciso metade deste ano para perceber como fazer esta performance; como passar isto para uma coisa ao vivo.”

Fatima pôs “muito trabalho nisto” – incluindo horas e horas a ver tutoriais de maquilhagem – e “muita ansiedade”. Mas acabou tudo bem. “É tão diferente de tudo o que fiz antes e é muito desafiante psicologicamente, fisicamente e tecnicamente.” Nunca a tínhamos visto assim, dizíamos, e também nunca a tínhamos ouvido assim: as cinco canções de Shaneera são verdadeiros bangers para a pista de dança, tiro e queda, povoadas por um hedonismo feérico e luciferino, sempre ondulante, sempre sinuoso. É volúpia que lateja nos cantos escuros de uma festa onde o relógio parou. É excentricidade e júbilo bem calibrados por “batidas ocidentais” (molda-se as batidas graníticas do grime e os socalcos do trap), “melodias árabes” com vozes a condizer e “instrumentos de percussão do Golfo [Pérsico]”, muitos deles associados à música khaleeji, mas sem pretensões de registo etnográfico (ela gosta de estar cá e lá, suspensa entre mundos). “Foi muito divertido fazer um disco totalmente para dançar. Acho que nunca tinha feito nada assim, e isso foi outro desafio técnico para mim”, assinala a autora. “Não há uma canção que seja mais calma.” Isto é o espírito Shaneera a acontecer. “Ela tem montes de energia. É uma party animal do mal, sabes?”

Desenhos animados e tendências de moda

O termo Shaneera surgiu por brincadeira entre o grupo de amigos de Fatima Al Qadiri, no Kuwait. É uma pronunciação errada e anglicizada da palavra árabe "shanee’a", que significa “escandaloso, perverso, abominável”. Fatima e os amigos apropriaram-se deste termo e subverteram a carga negativa que lhe está associada, dando-lhe uma roupagem queer, benigna, celebratória. “Shaneera é uma personagem que é uma espécie de rainha malvada. É como um espírito do mal que te possui, mas da melhor maneira possível. Qualquer pessoa pode activar a Shaneera dentro de si.” Apesar de a artista usar pronomes femininos quando se refere a Shaneera – sempre que pode, faz questão de “feminizar” a língua –, o termo refere-se, na verdade, a uma persona que desafia os padrões binários e naturalizados da identidade e da expressão de género, desestabilizando a cisheteronorma.

“Tenho estado fascinada por esta persona há muito tempo”, revela Fatima. Essa “obsessão” (a primeira de muitas de que nos fala, sempre entre risadas generosas e piadas bem metidas) começou com os desenhos animados. “Muitos vilões são um bocado camp. São um bocado femininos, o que é super interessante. O exemplo mais presente na minha vida é o Jafar [de Aladino]. Ele é 100% Shaneera. A voz, o visual, o traço do desenho; todo o conjunto.” Outra obsessão que levou Fatima a delinear este alter ego foi uma tendência de maquilhagem exagerada que fez furor entre muitas mulheres do Kuwait no início dos anos 2000 e que serviu de inspiração directa para o look da capa do disco e das performances. “Era a loucura”, recorda a artista. Estava em todo o lado, dos salões de cabeleireiro às ruas, até aos sectores mais burocráticos do país. “Nunca me vou esquecer daquela vez em que aterrei no aeroporto do Kuwait e em que mostrei o meu passaporte a uma agente do departamento de imigração que estava com este tipo de maquilhagem. Quase que me passei! Estava tão impressionada com o facto de ser ok uma pessoa que vê os passaportes poder estar assim.”

Enquanto no Ocidente este visual de feminilidade hiperbólica e performática é lido principalmente como uma manifestação algo transgressora característica das e dos drag queens, no Kuwait foi simplesmente o pão nosso de cada dia durante um determinado período – o que muito pertinentemente põe em causa definições hegemónicas que julgamos serem verdades absolutas (as heranças do colonialismo estão sempre ao virar da esquina). “Em árabe não temos a palavra 'drag'; o equivalente é draga. Para mim, a minha imagem na capa do disco não é sequer draga. É um feminino extremo”, afirma Fatima. Afinal, como diz a escritora e filósofa Judith Butler, o “género é performance”.

“O drag é, na verdade, uma performance de género exagerada. Mas a performatividade extrema de género é, muitas vezes, a norma no Kuwait”, aponta Fatima. E, de outros modos, acaba também por ser a norma na imagética ligada às estrelas pop, nota a compositora, que representam tantas vezes “o derradeiro homem” e a “derradeira mulher” de forma profundamente essencialista e normativa. “A capa do meu disco também foi inspirada nas capas de álbuns das estrelas pop femininas, que são as mulheres mais mulheres que existem. No Ocidente começas a ver uma pequena revolução contra este binário, mas ainda é muito assim no mundo árabe.”

Grindr e censuras

Todas as canções de Shaneera, o EP, são cantadas em árabe por vocalistas não-profissionais, amigos de Fatima Al Qadiri: Bobo Secret, Lama3an, Chaltham e Naygow. Um é arquitecto, outro trabalha nas finanças, a profissão de um deles tem de ficar no anonimato. À excepção de Chaltham, também conhecido por Khalid al Gharaballi, colaborador e cúmplice de longa data da artista, em duo e no colectivo GCC, todos usam nomes falsos – e ela diz-nos “que não pode falar muito sobre isso” para não os meter em sarilhos. Já bastaram os “muitos, mesmo muitos, comentários homofóbicos repugnantes” que se desenrolaram após o lançamento do disco.

As letras, “meio improvisadas”, incluem material sacado de chats do Grindr (aplicação de encontros LGBT) e de sketches de comédia drag. Fatima queria ter feito um disco sexualmente ainda “mais gráfico”, mas teve de censurar algumas partes “obscenas” por respeito à mãe, que vive no Kuwait, para não lhe arranjar problemas. “Ela ouviu as letras e disse ‘nem pensar, minha menina!’. Não quero dar-te exemplos daquilo que cortei, vou deixar isso para a minha autobiografia [risos]. Ou para quando tiver cidadania de outro país.”

Fatima Al Qadiri sempre fez ecoar nos seus projectos as suas inquietações políticas. No álbum Brute (2016) explorava a questão da violência policial, inclusive contra o movimento Black Lives Matter, e o direito ao protesto. No EP Desert Strike (2012) processava as memórias da primeira Guerra do Golfo (1990-1991), que viu a partir da janela de casa quando tinha nove anos, enquanto se viciava em videojogos para manter alguma sanidade mental – ao mesmo tempo que “ficava obcecada” por um teclado Casio, com o qual começou a fazer música. Agora, Shaneera sacode a melancolia. É um de grito de resistência, afecto e celebração dirigido ao seu círculo de amigos – e, por arrasto, uma carta de amor às comunidades queer e não-binárias do mundo árabe, que vão ganhando cada vez mais espaço de manobra nas redes sociais.

A canção Spiral e o respectivo vídeo – inspirados numa cena de dança do ventre excêntrica q.b. do filme Ayazon (2006), que se tornou “num hino queer não-oficial do mundo árabe” – funcionam como um resumo do “tema principal” do disco, diz Fatima. “Viver a vida ao máximo e estares a cagar-te para o que as pessoas pensam.” Isto também é ser 100% Shaneera.

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