No mercado “remediado” do Bolhão, o pregão esmorece mas não acaba

Fez este domingo quatro meses que os comerciantes do Bolhão se mudaram para o mercado temporário. Os clientes não os abandonaram e, para “remedeio”, dizem que a nova casa não está mal. Mas contam-se os dias para regressar à casa de sempre.

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Nelson Garrido
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Em Maio, as máquinas entraram por lá dentro ditando o início de uma reconstrução inevitável. O Bolhão não aguentava mais ver-se a desmoronar e os clientes a fugirem-lhe por já não se sentirem ali bem. As obras arrancaram, os comerciantes saíram. Hoje, as “casinhas interiores” já não existem, os andaimes em volta e os barulhos denunciam os trabalhos que parecem estar a andar a todo o gás para devolver à cidade e aos portuenses o seu mercado. Enquanto isso, a poucos metros dali, as vozes que enchiam aquele espaço habituam-se, sem se quererem habituar, ao mercado provisório.

Se se cumprirem os prazos em menos de dois anos, e 22 milhões de euros depois, o Mercado do Bolhão, deverá apresentar-se de portas abertas e cara lavada. O que ninguém quer é que se percam as feições antigas, nem os inquilinos de sempre. É que, para eles, o remedeio arranjado pela câmara, no centro comercial La Vie, é bom - “não se pode pedir melhor” -, mas o querem mesmo é regressar “lá abaixo”. “Sabe menina, é que ali é outra coisa”.

Falta-lhes o “ar puro”, ver o Sol, sentir a chuva e o vento. Até lhes faltam os gatos, “mas a gente vai-se habituando”, há-de dizer Fátima Teixeira, debruçada sobre as suas frutas. Fátima tem 30 anos de Bolhão, 55 de idade. Chegou a ser costureira, mas acabou por ir ajudar a irmã a vender fruta e “ganhar algum”. Até que uns anos depois tomou conta de uma banca e arrancou com o negócio. E ali esteve até ao fim do mês de Abril, altura em que se encaixotaram as coisas todas para se fazer a mudança – temporária – para o piso -1 do centro comercial La Vie, antigo GranPlaza, a pouco mais de 200 metros do “verdadeiro” Mercado do Bolhão. Este domingo passaram quatro meses desde que para ali foram - temporariamente, esperam eles - 82 comerciantes.

Passado esse 2 de Maio, em os holofotes estiveram todos apontados à festa na qual também apareceu o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, começou o trabalho e o receio de que os (poucos) clientes que ainda lhes compravam no Bolhão os acompanhassem. Mudou tudo. A banca de décadas mudou de sítio, o que se tinha à direita passou para a esquerda. A balança que estava naquele sítio agora está daquele lado. “Toda esta adaptação... custa a entrar no ritmo”, admite Fátima.
 
Mas os clientes de sempre não as deixaram. “Vão vindo”, diz Fátima, ainda que admita que ali se continue a viver muito com os estrangeiros, que compram “uma ou duas pecinhas para comer pelo caminho”. E ainda bem que assim é, porque foi o turismo a “arrebitar” o Bolhão, nota a vendedora. E os turistas lá têm chegado. “Não é como lá em baixo”, mas ainda assim, lá se vai arranhando o inglês e o francês com o sotaque de quem, já se sabe, se desenrasca em qualquer língua.”What is your favorite?”, replica-lhe a turista, lá aceitando as sugestões de Fátima na escolha de um sumo de frutas.

As novas instalações também lhe têm permitido diversificar os produtos que piscam o olho à juventude (e não só) estrangeira. Aproveita-se a fruta mais madura para fazer sumos e batidos ou fazer copinhos de fruta cortada. “Lá não tínhamos condições. Não tínhamos uma banca para lavar a fruta, nem uma banca com gelo para deixar os batidos e a fruta fresca”, repara Fátima. E os lá seguem os turistas pelo mercado com o copo de sumo da mão. A manhã, pelas nove e pouco, começa tranquila. A partir das 11h é que é: “Parece que param autocarros à porta”, conta um dos seguranças à porta do mercado. “As escadas rolantes estão sempre cheias”, repara.

Mal se descem as escadas, entrando pelo lado em que um grande cartaz assinala o “Mercado Temporário do Bolhão” damos de caras com os vendedores a receberem-nos à entrada, em fotografias. Um dos rostos mais conhecidos (podemos dizer que a idade aqui é um posto) é a de Ernestina Barros, 84 anos, por trás da sua Manteigaria do Bolhão, que costumava ocupar um cantinho do piso de cima do mercado. 

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“Já não volto para a minha lojinha”, há-de repetir, notando que a parte de cima do novo Bolhão será dedicada à restauração. Lá interrompe a conversa para servir uma turista que lhe pede uma garrafa de água. “É com eles que eu trabalho”, assume, continuando negócio de que o marido tomou conta em 1955. De vez em quando lá aponta para a parede para mostrar as fotografias da antiga loja, às que se juntam as da montagem da nova banca.

A câmara fez “um bom trabalho”, reconhece. “Nunca julguei que ficássemos tão perto e com as condições que temos. Há muita limpeza. Não tenho que dizer”. Quando se lhe pergunta pelo futuro, os ombros encolhem-se-lhe: “O futuro não sei”, suspira. "Se eu tiver saúde quero ir para lá. As pernas é que estão a começar a falhar, mas faço contas de ir para lá”. 

Novas oportunidades

Dos 82 comerciantes que se instalaram no La Vie, alguns não tiveram outra hipótese senão encher as bancas de outros produtos, já que não tinham autorização para continuar com os negócios antigos. Como Maria José Macedo, de 58 anos, que teve de trocar os souvenirs, que lhe garantiam o sustento, pelo mel, chocolates e outros doces. Ainda tem uma banca despida, porque o melhor, diz, é ir vivendo “um dia de cada vez”: “Não é nada do que era lá em baixo, nem tem comparação. Muito fraquinho aqui, pelo menos no meu ramo”.

Começou no Bolhão, aos 12, pela mão da tia e madrinha que vendia flores naturais e artificiais. Mas há cinco ou seis anos, teve de se virar para os ímanes, minigarrafas de vinho do Porto, azulejos, galos de Barcelos, barcos rabelos ou pipas em miniatura, que os turistas levam de recordação, para que o negócio resistisse. Por agora, tenta novamente reinventá-lo: “Temos de ir devagarinho para ver se isto melhora”, diz, com esperança.

Joaquim Lucas, 55 anos, e Elisabete Alves, 54 anos, acreditaram que a mudança lhes podia trazer novas oportunidades. A mãe de Lucas, como ali é conhecido, vendia flores no mercado já há muitos anos. Mas o negócio murchara e a idade já não permitia grandes rebuliços, por isso, o filho e a nora, que estavam ambos desempregados, viram ali uma oportunidade para encaminharem a vida. Lucas, que era instalador de painéis solares, acabou a montar uma charcutaria com produtos regionais.

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Ali começou-se tudo do zero, entre aprender a trabalhar (e a saber vender) o produto. Os clientes vão aparecendo, os turistas precipitam-se para a banca para provar o presunto, os portuenses param para dar dois dedos de treta e acabam por voltar.

Ninguém cala o pregão

Paula Viana é que não se queixa do negócio. Tem 48 anos e vende no Bolhão há 35. Quando se mudaram para o La Vie “foi assim esquisito”, define. Mas não está mal. Os clientes acompanharam-na para o novo mercado e já conseguiu cativar novos que não iam ao outro “por estar velho”. Apesar da falta de “ar livre”, o tempo tem “passado num instante”, diz. E vai sem medo do que poderá encontrar. “O que ele tem prometido, tem cumprido”, diz, elogiando o presidente da câmara do Porto, Rui Moreira, primeiro por ter avançado com as obras há tanto ansiadas, e segundo pelo “remedeio” que lhes arranjou.

Basta uma volta para a cidade para se encontrarem vários mapas espalhados que indicam a localização do mercado temporário. O PÚBLICO pediu um balanço à câmara do Porto sobre os primeiros meses de actividade do mercado temporário, mas a autarquia escusou-se, a comentar, explicando que a seu tempo fará um balanço.

“Nós gostávamos mais do Bolhão, não é? Era ar mais puro, era a tradição”, atira Ana Cardoso, a “Aninhas de Gondomar”, de 73 anos, que para ali foi vender os nabos da terra. Os pais eram lavradores e ela foi ajudá-los a vender a hortaliça que cultivavam. Hoje os tempos são outros, os legumes chegam do mercado abastecedor. E já não é preciso acordar às 5h da madrugada e ir para o Porto em carros de bois. Hoje, o carro fica no parque. “Nem à rua vou. Aqui estamos fechadas”, reclama, ainda que a mudança não tenha sido “o bicho-de-sete-cabeças” que pensava. “Eu, sinceramente, adaptei-me bem”.

As obras eram mais do que necessárias, reconhecem os comerciantes. Diz que “vai ficar muito bonito” - “eles não vão mentir sobre o que está ali” - repara “Aninhas”, apontando para a grande maquete que a câmara colocou no meio do mercado para que ninguém esqueça o que vão de novo encontrar. Um cliente que passa e se mete na conversa só teme que o mercado renovado se transforme num novo Bom Sucesso. “É que aquilo está assim um bocadinho fora do contexto”, atira.

Mas “os tempos são outros” e “como aquilo, o Bolhão, já não se vai fazer”. “Podiam recuperar as barraquinhas que havia no interior, mas pelo que oiço dizer vai ser um mercado amplo como este”, sugere Fátima Teixeira. O que se quer é que “fique bem”. “Isto aqui também não é o Bolhão e nós estamos bem, desde o cliente continue a vir.”

Há, no entanto, quem atire a toalha ao chão, nem se atreva a passar perto dos andaimes. “Lá era o Bolhão. Já andam a deitar abaixo. Eu nem quero lá passar. Um dia passei, vi aquilo tudo em baixo e fiquei tão doente que fugi. Aquilo são bocados nossos. É a casa que nos viu nascer”, atirou uma vendedora que preferiu deixar o nome fora da conversa.

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Joaquim Lucas diz que talvez pregão das vendedoras esteja a perder a força das suas vozes, mas a peixeira Lúcia Fernandes, que ali vende há 45 anos, garante que ninguém as há-de calar: “O Bolhão é a nossa alma. É uma coisa que está lá. O Bolhão somos nós. E isto até pode não ser o Bolhão, mas a gente há-de continuar a mandar uma caralhada”.

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