Um dia de feição
Quanto é que me vai custar esta sorte toda? Quantas desgraças me aguardam até se repor o reles equilíbrio da vida?
De vez em quando — para aí de vinte em vinte anos — corre-nos um dia de feição. Todas as surpresas são boas, sem falha, incluindo não haver surpresas quando é sempre mau haver.
As chatices que tínhamos de fazer, para as quais já nos tínhamos preparado, aparecem feitas por outras pessoas. E todas as deslocações necessárias para fazê-las tornam-se redundantes.
Não mexemos uma palha e, de repente, está tudo feito. O tempo que estava apertado agora sobra: com que luxo vamos desperdiçá-lo?
Vou só dar um exemplo. Preparo-me para enfrentar o calor para ir comprar whiskey e água com gás. Durante umas arrumações a Maria João encontra duas caixas do meu whiskey favorito e, juro que é verdade, 96 garrafinhas de água com gás ainda com muitos meses de validade.
"Não sabes o que tens", diz ela com um sorriso. Mas eu sei o que tenho: é ela. É ela a minha sorte.
Poupam-se esforços e poupam-se os euros que eu ia gastar. Parece magia porque é.
Afinal não é só um mal que não vem só: também o bem não gosta de andar sozinho. Num dia de feição quando pensamos que a sorte macaca já aconteceu, acontece outra vez. Como é que é possível? Já estou tão bem governado. Não preciso de mais nenhuma alegria, obrigadinho.
E lá vem uma nova alegria que nunca se pode recusar. Venha ela também.
Só há inconveniente num dia de feição. É o tormento da perguntinha desconfiada que azeda em todas as nossas almas: quanto é que me vai custar esta sorte toda? Quantas desgraças me aguardam até se repor o reles equilíbrio da vida?