O mito da vindima

Herdei da minha mãe o gosto pela terra e do meu pai um pouco mais de melancolia, mas, em novo, também era dos que adiava o regresso às aulas para ir à “festa” das vindimas.

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Paulo Ricca

“Antigamente é que era… “. Sim, antigamente a vindima é que era, homens subindo de sol a sol as escadas de xisto do Douro com cestos de sessenta quilos às costas e ainda com força para quatro horas de lagarada à noite, mulheres a sorrir por fora mas tristes de pobreza e de humilhação, crianços abandonados em casa, outros a faltar à escola para ajudar aos baldes e ganhar uns tostões, patrões que só davam sinal no fim do calvário para entregarem o sapatinho à escova dos descamisados e receberem o ramo em troca de uns doces e vinho à discrição.

Sim, antigamente é que era. Gostávamos da vindima porque no resto do ano ainda era pior. “Pais e filhos jogam naquela lotaria. Não que saia prémio que se veja. Todos o sabem. Os magros vinténs que ficam no fim da novena pouco ou nada adiantam. O que é, enche-se o peito doutros ares, sonha-se à ida, pena-se à volta, e muda-se, varia-se, passam-se quinze dias que não cheiram a tristeza nem a fuligem” (Vindima, de Miguel Torga).

Nunca entrei numa roga, mas via-a a passar por Alijó, vinda das aldeias da “montanha”, ainda no concelho mas já fora da região demarcada. Homens e mulheres amontoados nos camiões da Real Companhia Velha, uns acabrunhados pela condição, outros a fazer palhaçadas e a retribuir os piropos, radiantes por passarem umas semanas fora do seu pequeno mundo. Sempre que via o camião a aproximar-se, corria o olhar por todos aqueles rostos, em busca de um bem conhecido, o do meu tio José Augusto, “arrebanhado” em Francelos, uma das tais aldeias “da montanha” de Alijó. Trabalhador incansável, era o grande animador do grupo, sempre a cantar e a dançar, algo que fez até morrer.

Era irmão da minha mãe, com quem compartia o sorriso e o gosto pelo lado festivo da vida. Herdei dela o gosto pela terra e do meu pai um pouco mais de melancolia, mas, em novo, também era dos que adiava o regresso às aulas para ir à “festa” das vindimas. Sim, permitirem-me “dar uns dias” a cortar cachos ou despejar baldes era uma alegria. Mas aquilo moía as costas. Com 13, 14 ou 15 anos parecia que nos cansávamos mais do que qualquer mulher ou homem já derreados. Faltava-nos o calo do trabalho e a vergonha de enganar o patrão. O melhor era a hora da refeição, a meio da manhã, e as cantorias e as anedotas picantes com que as mulheres e os homens animavam o dia.

Não tinha ainda idade para perceber o significado da colheita, a importância de cada cacho e de cada bago, apesar de todos os anos nos repetirem a velha história de que “foi bago a bago que a Ferreirinha fez a sua fortuna”. Nada podia ficar na vinha. Era preciso meter a cabeça debaixo da videira e catar cada bago caído. As uvas tinham mesmo valor. Um hectare de vinha já era coisa de rico. O Douro vivia quase só de vinho do Porto e meia-dúzia de pipas de vinho generoso davam para colocar um filho a estudar na cidade.

Agora… Agora quem ganha dinheiro a sério no Douro é quem compra uvas, sem se preocupar com as doenças da vinha e os imprevistos climatéricos. E sem ir à vindima. Uvas muito abaixo do custo de produção e entregues na adega, contra pagamento pelo Natal ou pela Páscoa, se o comprador for sério. É o mercado. Quando a oferta supera a procura, dá nisto.

Este ano anda um rebuliço pelas aldeias durienses com a falta de uvas, apesar das generosas previsões enviadas pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto ao Instituto da Vinha e do Vinho. Aconteceu de tudo: granizo, ataques severos de míldio, escaldão e, mais recentemente, granizo de novo. Muitos viticultores nem vindima vão ter. Mesmo assim, parece que a produção regional vai satisfazer as necessidades, porque as grandes empresas não dão sinais de querer subir muito ao preço das uvas. Quem vender a 60 cêntimos o quilo de uvas para DOC Douro já pode gabar-se de fazer um bom negócio, apesar de 60 cêntimos ser quase metade do que se paga em Monção por cada quilo de uvas de Alvarinho.

Fazendo bem as contas, há casos em que sai mais barato deixar as uvas na vinha. Há quem o faça, até porque, mais do que nunca, é difícil conseguir gente para a vindima. As famílias são mais pequenas e as aldeias estão a ficar desertas. Hoje, as rogas são cada vez mais multiétnicas e há vindimas em que a língua dominante é o romeno ou o búlgaro.

Já ninguém canta. A música que se ouve sai dos telemóveis, ao gosto de cada etnia. O princípio da nacionalidade repete-se também de forma natural na maneira como o grupo se distribui pela vinha: portugueses com portugueses, romenos com romenos, búlgaros com búlgaros. Há poucas conversas cruzadas e nenhum convívio. O que sobra é a desconfiança mútua, que só se apazigua perante o estrangeiro mais trabalhador ou já com muitos anos de Portugal.

Antigamente é que era… Sim, antigamente, a vindima era o espelho das misérias e das virtudes do Portugal rural, uma época de trabalho, solidariedade e de convívio, mas também de maledicência e de bajulação. Continua igual, mas agora é também um espelho do próprio mundo, cada vez mais xenófobo e competitivo. Tão competitivo que agora só se pára meia hora para comer uma bucha (uma sandes de qualquer coisa).

Todas as colheitas têm o seu quê de festivo. A sua importância sempre se mediu pela merenda, mais rica do que o habitual. É desse momento final, da merenda comida no campo com a família e alguns vizinhos, no melhor espírito da torna-jeira, que tenho realmente saudades. Da vindima fora do âmbito familiar e na condição de assalariado guardo apenas a nostalgia do passado, nada mais. Porque, na verdade, vindimar é um trabalho duro. Começa-se com entusiasmo e acaba-se com alívio. Mas há quem continue a pensar que é uma festa, como nos tais velhos tempos. Os mitos são assim: custam a desaparecer.

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