O surreal, de Cruzeiro Seixas a David Lynch

Uma escultura do realizador David Lynch é o ponto de partida para esta exposição sobre o Surrealismo.

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O colectivo Origami recriou a peça de Lynch que se vê em<i>Twin Peaks</i>
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O colectivo Origami recriou a peça de Lynch que se vê emTwin Peaks VASCO CÉLIO / STILLS
<i>Água</i>, de Samuel Rama, uma instalação feita com madeira e areia
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Água, de Samuel Rama, uma instalação feita com madeira e areia VASCO CÉLIO / STILLS

Há praticamente um ano abria em Lisboa, nas instalações da Fundação Millenium BCP, uma exposição sobre o núcleo de obras de autores surrealistas, ou próximos desta tendência, pertencentes a esta instituição. Com curadoria de Raquel Henriques da Silva, A partir do Surrealismo na Colecção Millenium BCP completava-se com uma intervenção contemporânea do artista Rui Macedo, em diálogo com as obras expostas, como é habitual na linguagem deste artista.

A exposição que agora decorre no Museu de Faro, Surrealismo na Colecção Millenium BCP e alguns Ecos Contemporâneos, assume-se como consequência e desenvolvimento dessa apresentação inicial. Raquel Henriques da Silva escolhera autores que ora tinham integrado um dos grupos surrealistas surgidos em Portugal nas décadas de 40 e 50 — Cruzeiro Seixas, Cesariny, Vespeira , Dacosta e Carlos Calvet, associando-lhes três outros nomes cujas linguagens, através da opção pela figuração, por um certo sentido narrativo, pela materialização do nonsense ou da convocação de um fundo mítico presente nas culturas etnográficas, se poderiam conjugar com eles. Foi o caso de Paula Rego, de Eduardo Luiz e de Graça Morais. Mais tarde, surgiu um convite ao curador Nuno Faria para realizar nova montagem no Museu Municipal de Faro. O resultado que aqui agora vemos é muito diferente da exposição anterior, mesmo levando em conta que boa parte das obras são comuns.

Em Faro, o museu reservou duas salas para esta exposição. No primeiro andar concentram-se as peças que já tínhamos visto em Lisboa, as de Dacosta (entre as quais uma belíssima Fonte de Sintra VIII), Paula Rego (com duas obras), Cruzeiro Seixas e Cesariny. Todas as obras são de qualidade superior, mas deverá assinalar-se que as de Dacosta, por exemplo, não pertencem à época em que integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, em 1949, nem sequer aos seus primeiros anos de actividade artística, mas sim à década de 90, última fase da sua obra, em que se concentra nas questões específicas à pintura abandonando intenções programáticas.

Na sala do rés-do-chão, uma antiga capela, a exposição assume maior risco. Para aqui, Nuno Faria destinou duas tapeçarias de médio formato, assinadas respectivamente por Graça Morais e Cruzeiro Seixas. As peças, embora se mantenham fielmente no tipo de linguagem que caracteriza a obra destes autores, surpreendem pela própria técnica utilizada, já que a tapeçaria, como outras artes decorativas, não tem habitualmente o prestígio que ainda hoje é atribuído à pintura ou à escultura, disciplinas onde a relação com a mão do artista (o eu criador…) é imediata. Existe aqui assim, logo à partida, um assumir da obsolescência das antigas hierarquias artísticas numa contemporaneidade que tudo fez e faz para as questionar. De certo modo, foi isso também o que o Surrealismo fez, ao convocar simultaneamente a ciência (pela via da psicanálise) e a etnologia (pela via da actualização da iconografia mítica primordial) para a defesa de uma arte que pela primeira vez na história nada tinha a ver com a definição de um estilo formal. O Surrealismo assumiu todos os estilos, todas as técnicas, todas as disciplinas artísticas, todas as linguagens (da pintura ao cinema, por exemplo), ressalvando sempre a liberdade total e revolucionária como princípio criativo.

Juntamente com estas tapeçarias, Nuno Faria, assumindo, e bem, que os princípios teóricos do Surrealismo podem continuar vivos e operantes no trabalho de artistas da actualidade, chamou um grupo muito concreto de criadores e convidou-os a trabalhar a peça de David Lynch intitulada A Evolução do Braço, que dá o título à exposição. Lynch, que também é artista plástico, é decerto um dos realizadores onde as duas realidades exaltadas pelos surrealistas do século XX — a onírica e a sensível — se conjugam melhor. A escultura em questão, que aparece na versão mais recente de Twin Peaks, parece ser um objecto que, afinal, nunca existiu a não ser no mundo da realidade virtual.

Na exposição, o colectivo Origami (Filipe Feijão, Antónia Labaredas e Sara Silva Carvalho) recriou tridimensionalmente a peça que se vê na série televisiva, ao mesmo tempo que Mumtazz, artista multifacetada que já teve individual no CIAJG, realizou uma colagem sonora a partir de diversos autores e compositores, de Laurie Anderson a Patti Smith, de César Monteiro a Buñuel. Estas duas peças, as mais próximas do tema proposto, conjugam-se com outras onde o acaso e o automatismo, tão caros aos surrealistas, são mais evidentes. Trata-se de Água, de Samuel Rama, uma lindíssima instalação feita com madeira e areia; de Jornada Primaveril, de Jorge Feijão, uma improvisação a óleo na cabeceira do templo que lembra uma ave em voo; e da obra de Rui Horta Pereira, uma série de desenhos sombrios a grafite onde a figura surge obsessivamente e, diz o autor, inesperadamente e sem que ele saiba explicar porquê.

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