Huelva: dos frades e de Colombo, religiosa e marítima

A história da cidade, e da província homónima, escreveu-se com base numa profunda vocação marítima, mais exacerbada durante a Idade Média, numa época em que os portos da região viveram dias de esplendor.

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Sousa Ribeiro

As águas são como mil espelhos, agora prateados, logo depois dourados. Sobre elas, que vão deslizando suavemente, como dunas ao sabor do vento, o Muelle de la compañia Ríotinto, entrando pelo mar, com uma história tão rica que faz dele um dos ícones de Huelva, a cidade que parece dormir um sono profundo quando a cruzo, com uma temperatura de 38 graus que justifica mesmo a ausência de cães nas suas ruas silenciosas — até eu indolente naquela indolência contagiosa.

Há obras à sua volta mas nem mesmo essas retiram delicadeza a uma obra-prima da engenharia do último quarto do século XIX. Construído em 1874 e encerrado em 1975, o cais que era propriedade da Compañía de Minas de Ríotinto, de descarga dos minerais, em Huelva, está declarado Bem de Interesse Cultural e, após uma reabilitação em 2007 (a que se segue a que está em curso na área adjacente), passou a destinar-se apenas aos cidadãos, ao público em geral, para que desfrutem, como eu a esta hora em que se anuncia um entardecer para carregar na memória, de uma quietude apenas perturbada pelo marulho das ondas ou por um cargueiro anunciando a sua partida ou a sua chegada ao porto de Huelva.

Um elegante passeio marítimo, com espaços verdes e delicadas pontes de madeira, conduz-me até uma estátua imponente (na Punta del Sebo, mesmo na confluência dos rios Tinto e Odiel) que ameaça tocar o céu matizado de uma luz pouco diáfana. Dominando tudo à sua volta, o Monumento a la Fe Descubridora, para os mais íntimos, os habitantes de Huelva, o monumento a Colón, representa a figura de um frade franciscano do mosteiro de la Rábida, um entre os muitos que, imbuídos de uma fé sem limites, desempenharam um papel importante para ajudar Cristóvão Colombo na descoberta do Novo Mundo.

Inaugurado em 1929 e obra da escultora norte-americana Gertrude Vanderbilt Whitney, o monumento ergue-se a uma altura de 37 metros, exibindo o frade apoiado num tau, o símbolo da espiritualidade franciscana, coberto com um manto e de olhos postos no ocidente, enquanto a seus pés são visíveis diferentes baixos-relevo que representam as culturas azteca, maia, inca e cristã.

A história da cidade de Huelva, e da província homónima, escreveu-se com base numa profunda vocação marítima, mais exacerbada do que nunca durante a Idade Média, numa época em que os portos da região viveram dias de esplendor — foi do cais de Palos de Frontera que partiu, a 3 de Agosto de 1492, e de acordo com os desejos de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, a primeira expedição de Cristóvão Colombo rumo às descobertas.

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Sousa Ribeiro

É na outra margem do rio Tinto, já no munícipio de Palos de Frontera e ainda sob um sol sem contemplações, que os meus passos se cruzam com o Cais das Caravelas e com um museu criado para celebrar o quinto centenário do descobrimento da América. É mais uma viagem no tempo, de olhos postos nas reproduções da nau Santa Maria, nas caravelas Pinta e Niña, três embarcações que nesse início de Agosto desse ano longínquo, comandadas por Juan de la Cosa, Martín Alonso Pinzón e Vicente Yáñez Pinzón, respectivamente, começaram a sulcar os mares desconhecendo que  pouco mais de dois meses depois (a 12 de Outubro) atracariam em Guanahani. Baptizada San Salvador por Cristóvão Colombo, a ilha também tem uma réplica no Muelle de las Carabelas, sob a designação de isla del Encuentro, numa tentativa de recriar a cultura indígena desse período dourado, bem como um centro de interpretação e um bairro medieval que transporta o viandante no tempo e dão por bem empregues as horas que se consomem neste museu que retrata com fidelidade o apogeu da marinha espanhola.

O dia avança, o calor dá uma trégua e Huelva mostra, além da sua vocação marítima, o seu carácter religioso, tão impregnado também em Palos de la Frontera, onde tantos olhos se plantam no mosteiro de Santa María de la Rábida, erguido entre os séculos XIV e XV (mas com origens que remontam ao início da segunda metade do século XIII), alvo de constantes renovações ao longo dos anos (também foi afectado pelo terramoto de Lisboa em 1755) e local de abrigo de Cristóvão Colombo na antecâmara da sua viagem para a América.

Também não é por acaso que o mosteiro, vulgarmente designado La Rábida e onde Martín Alonso Pinzón encontrou a sua última morada, num hábito franciscano, como era seu desejo, poucos dias após o regresso da primeira expedição às Américas — esse mosteiro onde está sepultado o grande armador da região nesse tempo foi declarado Monumento Histórico e Artístico da Nação logo em 1856, sendo também considerado o terceiro monumento nacional do país, tributos que seguramente também valorizaram não apenas o conjunto arquitectónico, mas a dimensão de La Rábida como epicentro da evangelização da América.

Por ele passou o papa João Paulo II há 25 anos.

Estou de volta a Huelva, ao centro urbano, até à sua catedral, cuja construção foi iniciada em 1605, igualmente danificada na sequência do terramoto que destruiu Lisboa, magnificente a esta hora, brilhando à luz do sol que se prepara para um mergulho no horizonte, tão barroca e tão rosada.

Agora que a noite avança, na sua marcha inexorável, regresso ao cais do rio Tinto, tão envolto num silêncio que apazigua, com as suas luzes brilhando no espelho das águas serenas. E por ali fico, à espera, como quem aguarda um comboio que, proveniente das minas de Ríotinto, carregado de metais e de histórias dessa paisagem marciana, um dia acabará por chegar ao seu destino.

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