A peruca de “Charly” Dörfel ainda está no museu do Hamburgo

Ícone do histórico clube alemão, Dörfel teve uma ocupação curiosa quando pendurou as botas: tornou-se palhaço num circo

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Charly Dörfel, à direita, num jogo da Bundesliga em 1963 Hamburger SV

Começou a Bundesliga 2018-19 e, pela primeira vez desde que o campeonato alemão foi criado, em 1963, o Hamburgo não irá disputar o escalão principal. Foram 55 anos de presença contínua entre a elite do futebol germânico, uma série interrompida com a despromoção na temporada passada. Emblema histórico da Bundesliga, pelo Hamburgo passaram vários grandes futebolistas – mas Gert Dörfel foi um pioneiro e cabe-lhe a honra de ter sido o autor do primeiro golo do clube na Liga alemã. Teve uma vida cheia de peripécias, que incluem ter usado uma peruca que agora está no museu do Hamburgo, e ter trabalhado como palhaço num circo, quando deixou o futebol.

Dörfel, a quem chamavam “Charly” pela sua parecença com a personagem de banda desenhada Charlie Brown, foi uma das personalidades mais singulares da história do Hamburgo e do futebol alemão. Era uma espécie de brincalhão de serviço. “Um amigo meu foi assistir a um jogo e eu disse-lhe: ‘Vou encontrar-te na bancada’. Durante o jogo ia olhando e, pouco antes do intervalo, vi-o. Subi à bancada, pelo meio dos adeptos, apertei-lhe a mão, e gritei: ‘Encontrei-te!’”, contava, em 2009, à revista 11 Freunde. Entretanto, o jogo continuava a decorrer. “Enquanto eu conversava com o meu amigo, um espectador gritou: ‘Charly, a bola!’ Corri de volta para o campo, recebi a bola, e lá fui eu novamente a correr para a linha de fundo”, acrescentou.

Distinguido em 1965 pelo diário desportivo francês L’Équipe como o melhor extremo esquerdo da Europa, “Charly” Dörfel somou, no entanto, apenas 11 internacionalizações e sete golos pela RFA, traído pelo seu temperamento brincalhão, desconcertante para os técnicos que teve na selecção. “Em termos de talento, poderia ter chegado às 100 internacionalizações. Mas eu não era diplomata, muitas vezes era desbocado”, admitiu à 11 Freunde. Em campo, o veloz extremo gostava de liberdade. “A adesão rígida às posições não era para mim. [O seleccionador Sepp] Herberger queria jogar uma espécie de catenaccio”.

Mesmo assim, ficaram memórias como o episódio com Pelé, num particular em 1963. “Esgueirei-me por trás dele, como um gato, e roubei-lhe a bola do pé, derrubando-o. Ele ficou no chão, os companheiros dele protestaram, e eu acabei a massajar as coxas do Pelé”, recordava na mesma entrevista.

O excesso de rigor faria Dörfel desinteressar-se de representar a equipa nacional e começar a rejeitar as convocatórias. “Acho que sou o único jogador do mundo que declinou jogos internacionais porque queria trabalhar”, lamentou à 11 Freunde. O futebol ainda não tinha chegado ao profissionalismo e “Charly” Dörfel trabalhou durante toda a carreira. Foi vendedor numa empresa de chocolates, contabilista na cervejeira Holsten, trabalhou na emissora NDR e chegou a vender automóveis. Mas seria depois de deixar os relvados que teria o seu emprego mais curioso: palhaço no circo Krone.

Não foi só pelos golos e assistências que Dörfel ficou na história do Hamburgo. Tendo sofrido de calvície desde muito cedo, começou a usar uma peruca que agora está no museu do clube. “Trouxe-a pessoalmente, antes da inauguração, em 2004”, contou o director do museu, Dirk Mansen. “Tinha um contrato de publicidade com um fabricante de perucas e usava-a, mas apenas na vida privada, de modo que quase ninguém o reconhecia quando passeava por Hamburgo. Chegava quase incógnito aos jogos. Uma vez, vinha de eléctrico, e iniciou uma discussão com outros adeptos, quando começou a criticar Dörfel. Divertia-se a valer”, acrescentou.

Nascido numa linhagem familiar ligada ao futebol (o tio Richard foi capitão do Hamburgo, clube que o seu pai Friedo e o irmão Bernd também representaram, assim como a selecção), “Charly” ingressou na equipa secundária do Hamburgo aos 18 anos. Mas um ano depois já começava a desenhar uma dupla temível com Uwe Seeler, o destinatário das suas assistências para golo.

Chegou 1963, e com ele a Bundesliga. O Hamburgo foi um dos clubes integrantes dessa primeira edição, e “Charly” Dörfel deixou a sua marca logo na jornada inaugural. A 24 de Agosto de 1963, na visita ao Preussen Münster, fez de cabeça o golo do 1-1, tornando-se no primeiro jogador do Hamburgo a marcar no campeonato alemão. Na ronda seguinte tornou a fazer história, frente ao Saarbrücken, ao ser o primeiro futebolista a fazer um hat-trick na Bundesliga.

Esse golo inaugural do Hamburgo na Liga alemã é, para Dörfel, o momento mais bonito da carreira. O mais triste chegaria cinco anos depois. “Foi em 1968, quando perdemos para o Milan na final da Taça dos Vencedores das Taças”, dizia em 2017, numa entrevista ao Bild, na qual se mostrava preocupado com o espectro da despromoção: “O meu coração bate pelo Hamburgo. Mas o perigo da descida é maior do que nunca. A equipa muitas vezes só aguenta 15 a 30 minutos, depois entra em colapso como um castelo de cartas. Se eles descerem será muito, muito triste.”

A queda no segundo escalão acabaria mesmo por acontecer no ano seguinte, mas “Charly” Dörfel terá sempre as suas memórias. Campeão em 1960 e vencedor da Taça da Alemanha em 1963, o extremo esquerdo tem na garagem da casa onde vive uma espécie de museu pessoal: troféus, medalhas, camisolas, cartazes, galhardetes e fotos de uma carreira recheada de grandes momentos. Para além da final da Taça das Taças em 1968, o Hamburgo tinha estado perto da decisão da Taça dos Campeões Europeus em 1961. Caiu nas meias-finais perante o Barcelona, numa eliminatória decidida apenas com recurso a um jogo de desempate, em campo neutro.

Em 1972, relegado para o banco de suplentes do Hamburgo, Dörfel deixou o clube de toda a vida. Ainda jogaria na África do Sul e Canadá, antes de terminar uma carreira marcada pela parceria com Uwe Seeler. “Posso dizer com orgulho que durante 13 anos tive autorização para atirar a bola contra a cabeça deste semideus do futebol. Ele deve estar feliz por não ter quaisquer sequelas”, atirava com uma gargalhada, resumindo: “O futebol era importante para mim, mas não era tanto um trabalho, era mais um hobby. Sempre foi a coisa mais divertida do mundo”. E assim é que deve ser.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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