Verdade, confiança, dar a palavra aos crentes: uma nova Reforma da Igreja

Esta crise profunda pode ser, como no século XVI, ocasião para uma também profunda Reforma da Igreja. A oportunidade está aí.

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Protesto na Catedral do Chile, este Agosto ALBERTO PENA/EPA

Conhecer a verdade, restaurar a confiança, dar a palavra aos crentes e promover uma nova reforma da Igreja. Estas são algumas das urgências para enfrentar o que está a acontecer no catolicismo. Uma crise só comparável, na dimensão, extensão, gravidade e profundidade, à que levou à Reforma do século XVI. Nesta crise, revelam-se, tal como há 500 anos, problemas graves como abuso de poder, clericalismo, formas de nepotismo, centralidade da instituição em detrimento do evangelho, má gestão de bens... O Papa Francisco, que este sábado chega à Irlanda, tem alertado para várias destas questões e já repetiu que considera muito grave o que se passa.

A 28 de Março de 2010, poucas semanas antes da visita de Bento XVI a Portugal, escrevi no PÚBLICO que a questão dos abusos era a mais grave crise do catolicismo dos últimos 100 anos, só comparável ao conflito modernista de há um século. Os desenvolvimentos dos últimos anos deram claramente ao problema uma configuração mais grave, que só medidas universais e inovadoras, que não se fiquem por jejuns, orações e penitências, podem ultrapassar. Quais podem ser elas?

Uma investigação universal, em cada diocese ou país, feita por iniciativa da Igreja, mas entregue a especialistas independentes, incluindo mulheres, é uma primeira medida; caso contrário, iremos continuar pelo menos mais 20 anos a conhecer sucessivos relatórios, casos e revelações que só trarão uma “morte lenta” de mil golpes, como dizia, a propósito da Pensilvânia, o padre jesuíta Thomas Reese, que tem lutado contra o encobrimento.

Outra medida será a convocação de um Concílio verdadeiramente universal, já não reduzido à participação de todos os bispos do mundo, mas aberto a todos os estados da Igreja; esse Concílio (ou, pelo menos, um grande Sínodo alargado), deveria traduzir a recuperação do espírito consagrado pelo II Concílio do Vaticano (1962-65), de participação de todos os baptizados nas decisões que a todos dizem respeito.

Uma terceira ideia é a reconfiguração da formação dos padres, nomeadamente no campo da afectividade e sexualidade, bem como do âmbito do seu ministério, mais de acordo com a dimensão de serviço própria do cristianismo e não com a dimensão de casta recuperada do judaísmo antigo.

Serão estas hipóteses (e outras que apareçam) suficientes para acabar com a tragédia? Talvez não, pois esta crise reflecte, também, a dificuldade que a natureza humana (ainda) enfrenta nas questões dos afectos, da relação e da sexualidade. Mas elas ajudarão, pelo menos, a que a dimensão devastadora do problema seja muito atenuada. Vamos por partes.

1. Na segunda-feira passada, o Papa escreveu uma carta que pode ajudar a descobrir algumas ideias novas. Mas, neste momento, é preciso mais (sublinho: mais) do que o “jejum e oração” que o texto sugere.

O texto é apenas uma primeira resposta ao relatório da Pensilvânia e é de prever que Francisco não se ficará por aquilo que ali escreve e que revela, antes de mais, a profunda angústia e (quase) solidão do seu autor, na tentativa de enfrentar o problema: muitos dos que deveriam estar do seu lado, estão, antes, interessados em perpetuar a situação, talvez para apertar mais o cerco que têm feito às propostas reformadoras do Papa, também no que se refere à questão dos abusos.

A carta é importante, desde logo, pela insistência no lugar central das vítimas, e não já da instituição (o grave erro que levou à actual situação). Bento XVI já ensaiara esta mesma atitude, encontrando-se com vítimas, prática que Francisco tem continuado, com o objectivo de escutar a voz de quem viu as suas vidas enfrentar feridas que nunca desaparecem, como ele escreve.

O encontro com vítimas (que se deverá repetir este sábado ou amanhã, em Dublin) tem sido fulcral para mudar a agulha do entendimento e do conhecimento que o Papa tinha da dimensão do problema. E para intervir dentro da própria Igreja, como me dizia uma das pessoas que tive oportunidade de ouvir esta semana. Isso foi claro no desastre do Chile, quando Francisco, mal informado por quem tinha o dever de lhe fornecer todos os elementos, reagiu intempestivamente a uma pergunta. Corrigiu depois o erro, mandando fazer uma investigação completa ao que se passou. E também está reflectido na carta de segunda-feira passada, onde o Papa não se cansa de referir a dor e impotência das vítimas.

Também foi importante, claro, a criação de comissões – no Vaticano ou a nível local – onde as vítimas intervieram. Mesmo se a participação foi, por vezes, ambígua, outras apenas instrumental ou se acabou mesmo por não resultar, ela trouxe essas vozes para o interior da Igreja.

2. Outra ideia importante da carta é quando insiste em que o problema tem de ser resolvido com o contributo de todos os católicos. Entre outras, há três frases importantes: “É necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social de que tanto necessitamos”; “É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação activa de todos os membros do Povo de Deus.”; “Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação activa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista.”

A praga do clericalismo, que o Papa tem condenado em múltiplas ocasiões e a propósito de diferentes situações, é central para entender o que se passou durante décadas: as vítimas têm sido “vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência”, diz o Papa na carta, repetindo uma ideia que já referiu em múltiplas ocasiões (ainda recentemente, em relação ao Chile).

O II Concílio do Vaticano, realizado na primeira metade da década de 1960, quis pôr a Igreja Católica a par com os tempos. O Papa João XXIII, que o convocou, falava em aggiornamento, a palavra italiana para actualização. Um dos aspectos do aggiornamento, presente nas intuições da sua convocação e na letra e espírito de vários dos seus documentos, era o da igual dignidade de todos os batizados no interior da Igreja.

Isto significa que os crentes já não são meros receptáculos da doutrina e das “ordens” de quem “sabe” (bispos e padres), mas são também sujeitos, cidadãos de corpo inteiro da “cidade de Deus”, com direito a participar nas escolhas que a eles também dizem respeito. A ideia de uma Igreja já não hierárquica, mas de povo de Deus, em círculos, em que cada pessoa tem o seu lugar e o seu ministério, foi um dos avanços do Concílio, que apenas retomou a ideia e a prática dos primeiros séculos do cristianismo.

Não foi por acaso que o texto da constituição conciliar Lumen Gentium, sobre a Igreja, retomou a imagem do corpo de que São Paulo fala na sua Carta aos Romanos: “Assim como num mesmo corpo temos muitos membros, e nem todos têm a mesma função, assim, sendo muitos, formamos um só corpo em Cristo, sendo membros uns dos outros.” Ao mesmo tempo, o documento acrescenta que a actividade dos leigos “é participação na própria missão salvadora da Igreja” e que eles (e elas...) “são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e activa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra”.

3. Estas ideias apontam para duas hipóteses de acção. A primeira é que a Igreja Católica assuma que é chegada a hora de conhecer e revelar tudo o que aconteceu e agir em consequência. O padre Thomas Reese afirmava, na semana passada, que o relatório da Pensilvânia deveria ser um “alerta” para todos os bispos, que deveriam contratar investigadores externos para saber o que se passou até hoje e publicar os resultados. Para ele, há um problema: se não se investigar toda a sujidade de uma vez, não se evita uma morte de “mil golpes”.

As observações de Reese são uma verificação óbvia: enquanto não se souber tudo o que aconteceu, andaremos a conhecer às pinguinhas as histórias de situações acontecidas no Canadá, nos Estados Unidos, na Austrália, Reino Unido, Alemanha, Irlanda, Itália, Portugal, África, América Latina, Ásia...

Em muitos casos, iremos limitar-nos a verificar que muitos dos protagonistas já morreram, porque, apesar de tudo, as medidas das últimas duas décadas começam a dar resultados e o número de casos está em franca regressão. Mas a comoção pública será sempre a mesma já provocada pelos casos de Boston, da Irlanda, da Austrália ou da Pensilvânia. E a degradação da imagem da Igreja Católica será progressiva.

Reese aponta ainda uma urgência: a de conhecer a vastidão do problema, de modo a limpar a casa de vez, conhecendo o que se passou, levando os criminosos à justiça, “compensando” as vítimas (se isso alguma vez será possível...) e estabelecendo um “compromisso com uma cultura do cuidado e o ‘nunca mais’ a qualquer tipo e forma de abuso”, como também escreve o Papa na carta.

A responsabilização deve ir até aos mais altos cargos – ou seja, até aos cardeais, se houver razão para isso. O caso do ex-cardeal Theodore McCarrick, antigo arcebispo de Washington, que perdeu o título e foi obrigado pelo Papa a viver em reclusão, depois de ter sido condenado por abusar de menores e jovens seminaristas há várias décadas, não pode ser o único. Entre outros, o cardeal Pell está a ser julgado na Austrália, em França corre desde esta semana uma petição a pedir a renúncia do cardeal Barbarin, de Lyon, pois está acusado de encobrimento. Ninguém, absolutamente ninguém, pode ficar excluído.

Isto implica acabar de vez com a cultura do encobrimento e da negação. Não pode ser mais possível dizer que aqui ou acolá não há abusos, sem que isso seja averiguado e investigado. Portugal não é excepção e as regras estabelecidas pela Conferência Episcopal Portuguesa não podem ficar à espera de eventuais investigações judiciais. Os casos já conhecidos e o relato de Vergílio Ferreira no livro Manhã Submersa mostram que o problema também existe no catolicismo português. Ou ele é enfrentado ou assistiremos, também aqui, a um periódico cortejo de denúncias.

Uma linha dedicada à recolha de queixas poderia ser uma das medidas. Sujeita, obviamente, a um escrutínio rigoroso, de modo a que não se torne num instrumento de denúncia inquisitorial como, infelizmente, persiste em tantos ambientes, incluindo da Igreja Católica.

4. A outra ideia possível é a convocação de um grande Concílio (ou pelo menos de um Sínodo alargado), com a participação de leigos baptizados (incluindo mulheres). A ideia do Concílio já foi também defendida pelo ex-padre e psicólogo australiano Terry Laidler, em artigo publicado quarta-feira no La Croix International, e no mesmo dia, aqui no PÚBLICO, o padre Anselmo Borges falava de um sínodo.

Claro que uma tal iniciativa não evita os riscos do clericalismo que existe entre muitos leigos. Mas teria a vantagem de trazer para o debate e a decisão o discurso directo de muitas pessoas empenhadas no trabalho diário de evangelização e de serviço em nome da Igreja que, na hora de tomar decisões, são esquecidas ou menosprezadas. E a convocatória deveria corresponder ao peso que os leigos (incluindo as mulheres) têm, em número, no interior da Igreja.

É pedir demais? Naquele que é apresentado como o primeiro concílio da história cristã, o de Jerusalém, mesmo se o relato bíblico dá destaque aos companheiros mais próximos de Jesus, não se imagina que a conversa tenha ficado reduzida a uma ou duas dúzias de pessoas... Além disso, a afirmação do documento conciliar já citado, de que “a totalidade dos fiéis que receberam a unção [de Deus] não pode enganar-se na fé” significa que são todos os cristãos que devem determinar o modo de agir de toda a comunidade.  

Só que estas intuições conciliares foram travadas, nas últimas décadas, e é necessário recuperá-las. A insistência do Papa na prática da sinodalidade poderia ter, com esta ideia, um excelente teste e concretização. Além disso, a confiança que muitos leigos perderam na sua hierarquia, em todo o mundo, só pode ser restaurada se todos os baptizados forem chamados a participar na definição do que deve ser o próximo futuro da Igreja.

5. Sejamos claros: quem provocou a crise foram os padres e bispos pedófilos e os bispos encobridores. Não foram as vítimas, nem os tribunais, nem os investigadores judiciais, muito menos os jornalistas. Há quem se aproveite? É a vida. Mas o crime já lá está, cometido na origem por quem não poderia nunca, sequer, sonhar com ele. Nunca.

O abuso do poder e o clericalismo são o centro da questão dos abusos sexuais, o celibato e o modo de o catolicismo encarar a sexualidade não deixam de ser factores importantes nesta questão, mesmo se não são o factor número um (dados do Departamento de Justiça dos Estados Unidos dizem que mais de três quartos dos crimes violentos contra menores ocorrem na casa do predador ou na residência da vítima; na página da Yello Dyno, associação de protecção de crianças contra abusos nos EUA registam-se 400 mil predadores sexuais; se multiplicarmos os 300 padres da Pensilvânia por meia centena de estados dos EUA, chegaremos a 15 mil padres, uma percentagem importante (não deveria existir um único caso na Igreja Católica) mas bem longe de ser a maioria dos casos.

O problema começa no actual modelo de formação dos seminários, que tem de ser repensado, nomeadamente no que diz respeito à questão dos afectos, com a colaboração de psicólogos, psicanalistas, pedagogos e outros especialistas. “Há muita imaturidade e patologia na relação de muitos adultos com a sexualidade e com as crianças”, dizia-me esta semana uma pessoa especialista destas áreas. Sendo exigente, o caminho do celibato não é para pessoas imaturas, mas muitos jovens nestas condições acabam por escolher ir para padre pensando que nesse caminho têm a solução para os seus problemas, acrescentava a mesma pessoa.

O actual modelo está a fazer nascer uma espécie de casta, que muitas vezes se considera privilegiada e acaba no autoritarismo. Por isso, é necessário reformatar o modelo de formação e de selecção dos candidatos. Também aqui, a comunidade deve ter uma palavra a dizer, pois é para o serviço à comunidade que um presbítero se ordena.

A lei do celibato, só imposta no início do segundo milénio cristão, foi sempre quebrada em muitas situações – e nomeadamente quando as pessoas não sabem viver a solidão, como infelizmente acontece com tantos padres (são eles mesmo que dizem que esse é o seu problema número um, como revelou a sondagem feita no I Simpósio do Clero português, que lamentavelmente não teve consequências). Isto não nega, claro, que haja padres felizes com o seu celibato e padres que não se enchem de si e da sua autoridade.

Também a direcção espiritual e a confissão devem ser desligadas do conhecimento próximo das pessoas. Tal como os médicos, psicólogos, psicanalistas e outros não podem acompanhar pessoas próximas, também os padres não podem ter funções que acabem por lhes dar um ascendente, ainda que involuntário, sobre outros.

6. Outras ideias aparecerão no debate que continua. Mas esta crise profunda pode ser, como no século XVI, ocasião para uma também profunda Reforma da Igreja. A oportunidade está aí.

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