Procurar o passado na Flor de Coimbra

Tinha deixado cair o “restaurante” há cinco anos, agora deixou cair a “pensão”. No entanto, continua de portas abertas. Já não há estadias prolongadas e quem procura os oito quartos são sobretudo os turistas, mas os donos querem manter-lhe o espírito.

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Nelson Garrido
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No edifício que faz a esquina da Rua da Sota com a Rua do Poço, na Baixa de Coimbra, são vários os sinais de um negócio que está há quase nove décadas na mesma família. Quem espreita pelo acesso do rés-do-chão vê ao topo da escadaria uma porta de madeira escura com as letras encarnadas por cima que anunciam a “Pensão Flôr de Coimbra”.

Cá em baixo, um painel em azulejo com a inscrição “Flôr de Coimbra” ajuda a traçar melhor parte da história de uma casa que acompanhou a evolução da cidade desde 1930. Por baixo do nome, onde antes se lia “Pensão Restaurante”, lê-se agora “Pensão 31-05-1930 a 31-05-2017”. Não é que o estabelecimento de Jorge Costa tenha fechado as portas no ano passado, apenas teve de alterar a designação por conta de uma legislação que decretou a extinção da palavra “pensão” enquanto tipologia de empreendimento turístico. Na mesma parede, a placa de acrílico transparente com duas letras azuis indica que se trata agora de um alojamento local.

Subindo os degraus de marmorite, espalmado no soalho de madeira do corredor que divide ao meio o andar do edifício branco, está o Zen, um rafeiro de porte médio cujo nome é auto-explicativo. A pensão ocupa o segundo piso de um prédio de três, propriedade de Jorge Costa, que, com a mulher, Maria João, gere o estabelecimento.

Numa casa que chegou a ter oito funcionários, apenas os dois trabalham agora a tempo inteiro. Ele, hoje com 55 anos, desde que terminou o liceu; ela, com 53, desde há cinco anos, quando o irmão de Jorge se afastou do negócio.

Ao recordar o passado da Flor, falam dos trabalhadores mais longevos, que chegaram a ter três e quatro décadas de casa. Entre eles surge o nome de Agapito, o corretor espanhol que, de fato azul e chapéu de chapa dourada com a inscrição “Pensão Flôr”, percorria as ruas da Baixa em busca de clientes. “Tinha um ordenado-base, depois ganhava uma comissão”, lembra o proprietário. O homem, que tinha queda para os jogos de sorte ou azar, terá deixado de trabalhar nos anos 1980, já septuagenário, tendo sido um dos que acumulou mais anos de casa. Sabe-se que terá fugido da Guerra Civil de Espanha na década de 1930 e que se fez empregar mais tarde na Baixa conimbricense.

Dos habituais aos passageiros

A Pensão Flor de Coimbra abriu as portas em Maio de 1930, pelas mãos de Joaquim dos Santos, marido da mãe do actual proprietário Jorge Costa. No entanto, por conta de uma doença do filho, o casal fundador mudar-se-ia para o Estoril. O actual dono não sabe dizer com precisão quando foi, mas estima que tenha acontecido entre as décadas de 1950 e 1960. “Quem ficou a gerir isto foi o irmão mais velho da minha mãe”, recorda. Pouco depois, o estabelecimento passou para as mãos de Lucinda do Bom Sucesso da Graça. “Trabalhou, viveu e morreu aqui”, aos 83 anos, conta o filho.

A história da casa atravessa vários momentos da cidade. Viu-a crescer, assistiu à destruição da Alta nos anos 1940, durante o Estado Novo, para que fossem construídos os novos edifícios da universidade. Já no novo milénio, seria testemunha das demolições na Baixa, para que ali passasse um metropolitano que, até hoje, nunca chegou. O estado daquela área da cidade, com edifícios devolutos e espaços comerciais vazios, motiva constantes questões dos hóspedes.

O boom de construção dos anos 1990 trouxe à pensão um novo tipo de clientes: os operários que vinham do Porto para trabalhar nas obras por um ano e eram alojados na Flor de Coimbra pelas empresas. Depois o sector entrou em declínio.

Em anos idos, havia mais estudantes, mas também o cliente que fazia uma estadia prolongada na cidade. Jorge recorda um comandante da polícia reformado que vivia na Beira, mas que passava duas temporadas por ano em Coimbra – um mês no Inverno, outro no estio –, alojado na sua pensão. Paralelamente, havia a clientela habitual do restaurante, entre a qual se contava o director da delegação do Banco de Portugal na cidade, cujo edifício fica a poucos passos, e o seu genro. “Eram como se fossem da casa”, acrescenta Maria João. Os comensais só pagavam a conta ao final de cada mês.

Todavia, “esta velha guarda já se perdeu”. Hoje, 90% dos hóspedes da Flor de Coimbra são turistas, a maioria estrangeiros. O português também vai aparecendo, mas mais quando há eventos, para ir com os filhos ao Portugal dos Pequenitos, do outro lado do rio, ou a uma clínica privada nas proximidades.

A palavra que introduzia o tipo de estabelecimento caiu em desuso. “Mesmo os clientes já não dizem pensão. Dizem pousada, ou hotel”, elucida Maria João, que continua a considerar que pensão é "um termo muito romântico para definir estas casas”. Por estes meses, o estabelecimento vai mantendo uma taxa de ocupação satisfatória. No dia em que o P2 visitou o estabelecimento, por exemplo, os oito quartos estavam preenchidos.

No corredor, juntamente com um telefone de discar preto e uma máquina de costura a pedal Singer, estão molduras que trazem memórias de outros clientes. Passaram pela Flor à conta do festival Coimbra em Blues, com direcção artística de Paulo Furtado. Mas o festival não é a única ligação à música. Os Pensão Flôr foram-lhe, em parte, buscar o nome, explica Luís Pedro Madeira, membro do grupo.

O 25 de Abril e a NASA

Com a morte da matriarca há cerca de 15 anos, a pensão ficou para os dois filhos. Foi precisamente quando o irmão de Jorge, o último cozinheiro, decidiu afastar-se do negócio que a casa fechou o restaurante em funcionamento desde o ano de abertura. Passaram entretanto cinco anos.

O restaurante funcionava na divisão onde os dois anfitriões falam com o P2, uma sala de paredes salmão e mobília escura, com dois sofás de cabedal e uma mesa de grandes dimensões coberta por uma toalha branca. A decoração dos armários e dos aparadores compõe-se com conjuntos de loiça, fotografias e colecções encadernadas. Dizem querer manter uma decoração que, mesmo tendo traços datados, esteja na linha da original.

No entanto, o interior da casa já foi mais ornamentado, recorda Jorge, que nasceu em 1963. Na sequência do 25 de Abril, o pai depauperou a decoração, com receio de ser considerado anti-revolucionário. Os dois espelhos de moldura dourada foram pintados de cinzento; as paredes da sala, a imitar mármore, foram alisadas; o candelabro que pendia do tecto, que ainda exibe um baixo-relevo oval ao centro, foi retirado.

Parte desse acervo foi recuperada, outra permaneceu. O proprietário relata a história de dois homens que, estando a trabalhar no restauro do altar de uma igreja em Vil de Matos, nos arredores de Coimbra, ficaram alojados na pensão durante um ano. Acabaram por recuperar também a cor original do caixilho dos espelhos, nas horas mortas em que tinham que deixar os reagentes do altar a actuar. Um dos espelhos está na divisão que servia de restaurante, outro no corredor, de frente para a porta de entrada.

O restaurante, explica Jorge, era uma espécie de “farta-brutos”. “Servia muitos jantares de faculdade, de antigos alunos, tertúlias, criava-se aqui uma coisa muito engraçada”, ilustra Maria João.

Foi também nesta sala que há uns anos entrou um turista norte-americano, descrito por Jorge como tendo um “boné de palha, calças creme e bigode fino”. Limpou quatro taças de caldo verde e uma picheira de vinho. No fim, fez conversa e apresentou o cartão que o dono tem pena de não ter guardado. Era engenheiro da NASA, dizia ter trabalhado no sistema de travagem de um vaivém espacial e vinha a Portugal pela gastronomia.

“O Jorge tenta criar mais proximidade com o cliente e muitas vezes acabam por ficar boas amizades”, descreve Maria João, que sublinha o ambiente familiar. Tanto que alguns até lhes enviam postais das suas cidades pelo Natal – são os espanhóis e os alemães quem mais tem esse hábito.

Também há quem ali fique alojado, vindo do outro lado do Atlântico, em busca de antepassados longínquos. Maria João conta que costumam ser brasileiros “à procura das raízes” e que, “se falam com o Jorge e lhe contam a história, ele é capaz de ir aos sítios com eles”, o que já lhe valeu diversas viagens às redondezas.

“Eles dizem que vêm procurar um bisavô, mas depois não há transportes”, explica Jorge, como se não tivesse alternativa a não ser levar os hóspedes no seu carro pessoal nessas pequenas viagens. “O último foi a uma aldeia de Penela. Dei lá um saltinho. O senhor deu uma volta no adro, entrou na igreja e veio-se embora”, descreve. Muitas vezes, nessas demandas, a ligação já não existe, ou as pessoas já morreram. Mas Jorge, conta Maria João, “comove-se sempre com as histórias das pessoas”.

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