"Tocou toda a gente e não tinha igual": as reacções à morte de Aretha Franklin

“Gigante”, “transcendente”, “um vislumbre do divino”, “um tesouro nacional americano”. Têm sido estes os adjectivos e as frases utilizadas em reacção à morte de Aretha Franklin. Donald Trump, por sua vez, foi Donald Trump. "Conheci-a muito bem. Trabalhou para mim muitas vezes", afirmou o Presidente americano.

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REBECCA COOK/REUTERS

As homenagens começaram a surgir ainda em vida da Rainha da Soul, assim que foi revelado, esta segunda-feira, o seu estado terminal, consequência de um cancro no pâncreas diagnosticado em 2010. Após a morte, amplificaram-se. Logo na segunda-feira, Beyoncé e Jay-Z dedicaram à cantora de Respect o concerto que deram nesse dia em Detroit. Esta quinta-feira, os Estados Unidos assistiram na televisão, durante o Tonight Show with Jimmy Fallon, a uma muito emocionada Ariana Grande a interpretar uma das canções mais emblemáticas de Aretha, (You make me feel) Like a natural woman, acompanhada pelos Roots, banda charneira do hip-hop criado nas últimas duas décadas. “Estive com ela algumas vezes. Cantámos na Casa Branca e ela foi tão doce, tão engraçada. Foi uma honra tê-la conhecido”, recordou a cantora.

Jimmy Fallon iniciou o programa contando a sua experiência pessoal com Aretha Franklin, vivida no dia em que aquela actuou ao vivo no programa. Argumentando que o ar condicionado seria prejudicial para as suas cordas vocais, Aretha exigiu que este fosse desligado nos estúdios. Enquanto toda a equipa sofria com o calor, Aretha surgiu com um casaco de peles e, entre gargalhadas, reclamou do frio que sentia. Desde essa altura, contou Fallon, Aretha ligava todas as semanas para o estúdio, pedindo que o apresentador fosse avisado de que estava a ver o programa em sua casa.

Mas o tom informal usado por Fallon parece ser a excepção. “Recorre-se habitualmente a superlativos ao descrever artistas espantosos, mas, do meu ponto de vista, até superlativos parecem insuficientes [para descrever Aretha Franklin]”, escreveu na sua conta do Twitter Annie Lennox, a ex-vocalista dos Eurythmics que gravou com Franklin Sisters are doin’ it for themselves, canção incluído no álbum Aretha, editado em 1985.

O alcance de Aretha Franklin e da sua obra tem eco no facto de recolher os maiores e mais sentidos elogios de músicos de todos os quadrantes. “Quer se tratasse de gospel, blues, jazz, R&B, pop, ou dos direitos civis, Aretha Franklin foi a maior dádiva e a voz de uma geração”, escreveu Willie Nelson, a lenda da country. Do outro lado do Atlântico, Glen Matlock, o baixista original dos Sex Pistols, deixava o seu testemunho ao Guardian. “Falou aos mal-amados, aos abandonados e aos carentes de afecto, não só os da sua cor, mas os de todas as cores, de uma forma que trouxe esperança à nossa alma, com total honestidade, do mais profundo do seu ser. É um dia triste”, declarou o veterano punk.

O mesmo sentem nos seus contemporâneos, quer tenham ou não convivido de perto com ela. Berry Gordy, o fundador da Motown, a editora nascida em Detroit que revolucionou a música americana, levando a todo um país ainda segregado as canções dos autores, cantores e compositores negros, lembrou a “querida, querida amiga, a rapariga da [sua] terra”: “Desde que a vi, criança, a cantar e a tocar piano na casa do seu pai, até assistir à sua actuação vibrante na Casa Branca, ela foi sempre impressionante. Independentemente da forma como a música mudou ao longo dos anos, ela manteve-se sempre relevante. Apesar de nunca ter assinado pela Motown, a Aretha era parte da minha família.”

Lee Fields, um dos últimos representantes vivos do período clássico da soul, nome de culto que ganhou reconhecimento alargado na última década, deixou um longo e emocionado testemunho ao Guardian, no qual defendeu que Aretha Franklin encarnava, da forma mais elevada, “aquilo que a libertação feminina pode ser – ela foi o catalisador para transformar a mulher do século XX na do século XXI.

O cantor de 67 anos, que actuou no último Super Bock Super Rock, acrescentou que a sua música "estava para além do género, englobava a dignidade humana e o orgulho que os humanos devem sentir uns pelos outros”. O mesmo destacou a música, compositora e rapper Meshell Ndegeocello, ao classificar o “dom” de Aretha Franklin como “vasto e transcendente – para além de género, idade e estereótipos culturais”: “Tocou toda a gente e não tinha igual."

Elton John, anfitrião da última actuação ao vivo de Aretha Franklin, em Novembro, em Nova Iorque, durante a gala do 25.º aniversário da sua AIDS Foundation – apresentou-a então como “a maior cantora de todos os tempos” –, manifestou a sua admiração no Twitter, escrevendo que a perda da Rainha da Soul “é um duro golpe para todos aqueles que gostam verdadeiramente de música": "A sua voz era única, a sua forma de tocar piano subvalorizada – ela era uma das minhas pianistas preferidas.” Recordou que, no dia do último concerto, Aretha estava notoriamente frágil e que duvidou de que ela conseguisse actuar. “Mas Aretha actuou e elevou o nível. Cantou e tocou de forma magnífica, e todos chorámos.”

Entretanto, e enquanto Paul McCartney, que admirava Aretha ao ponto de lhe ter oferecido nos anos 1960 a primazia de gravar a primeira versão de uma certa Let it be – a cantora foi adiando a edição e a sua versão acabou por sair posteriormente à dos Beatles –, pedia no Twitter que parássemos por um momento para agradecer a vida de Aretha Franklin, “rainha das nossas almas” [“queen of our souls”, no original], enquanto Diana Ross se dizia “em prece pelo maravilhoso espírito dourado Aretha Franklin”, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, abordava junto da imprensa a morte de uma das mais prezadas cantoras do país.

“Quero começar por dar as minhas condolências à família de uma pessoa que conheci bem. Trabalhou para mim em inúmeras ocasiões”, começou por dizer. Os elogios posteriores – “[Aretha] levou alegria a milhões de vidas e o seu legado extraordinário prosperará e inspirará muitas futuras gerações” – não foram suficientes para apagar o desconforto gerado pelas desastradas palavras iniciais. Tratar Aretha Franklin, na hora da sua morte, como sua empregada, para além de factualmente incorrecto – Aretha Franklin actuou em empreendimentos do magnata nas décadas de 1980 e 1990, o que é diferente de ter trabalhado para ele –, não podia cair bem, principalmente tendo em conta a dimensão de Aretha Franklin enquanto lutadora pela igualdade de direitos civis num país onde as tensões raciais atravessam os tempos.

Outros inquilinos da Casa Branca, ex-inquilinos, tiveram uma pose, digamos, mais presidencial. “Ela merece apenas o nosso RESPEITO, mas também a nossa eterna gratidão por nos ter aberto os olhos, ouvidos e corações”, twittou Hillary Clinton. Barack Obama, num texto mais expansivo, começa por escrever que “a América não tem realeza, mas tem a oportunidade de ganhar algo mais duradouro”, antes de descrever que, por mais de seis décadas, desde que Aretha começou a cantar na congregação do pai, os americanos foram "abençoados com um vislumbre do divino”. “Aretha ajudou a definir a experiência americana", escreveu o ex-presidente. "Na sua voz, conseguimos sentir a nossa história, toda ela e em todos os seus tons – o nosso poder e a nossa dor, as nossas trevas e a nossa luz, a nossa luta por redenção e o nosso respeito conquistado arduamente.”

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