No fim, tudo se resume assim: "Se Aretha o cantou, então é importante"

Dona de uma voz divina, compositora, pianista e produtora de génio, Aretha Franklin definiu a soul tal como a entendemos hoje. "Eu sou a minha música", dizia, e a sua música foi vida e superação da vida, foi dor e luta, milagre e transcendência. Morreu esta quinta-feira, aos 76 anos, mas será para sempre a Rainha da Soul.

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Podemos aferir da sua relevância pela mera enumeração das canções que compôs ou interpretou e sem as quais a segunda metade do século XX seria substancialmente diferente: Respect, Think, (You make me feel) Like a natural woman, Say a little prayer, Rock steady, Chain of fools, Dr. Feelgood, Spanish Harlem, entre muitas outras. Podemos aferir do seu estatuto reconstituindo o modo como se tornou símbolo da luta afro-americana pelos direitos civis e rosto e voz da emancipação feminina, ou lembrando que foi ela que cantou no funeral de Martin Luther King, em 1968, contava então 26 anos de idade e 14 de carreira, e que foi escolhida por dois presidentes norte-americanos, Bill Clinton e Barack Obama, para actuar nas respectivas tomadas de posse.

Podemos recordar o talento de Aretha Franklin como pianista, compositora e produtora, e a sua voz impressionante, dom natural aprimorado no gospel cantado na igreja e maturado pela dor e pelos sobressaltos da vida, tão longa e tão vivida desde tão cedo. Podemos recapitular as homenagens que se multiplicaram desde que na segunda-feira a família deu conta ao mundo do seu estado de saúde crítico: foi visitada por Stevie Wonder e pelo reverendo Jesse Jackson, teve Beyoncé e Jay-Z a recordá-la no palco do concerto que o casal deu em Detroit, viu a comunidade reunir-se em vigília numa igreja da mesma cidade, aquela em vivia. Podemos apontar que modelou aquilo que foi a música soul desde a década de 1960 e que foi influência determinante para quem veio depois, de Roberta Flack a Beyoncé, passando por Erykah Badu ou Mary J. Blige. E também podemos resumir tudo àquilo que dizia uma jovem fã de 19 anos numa histórica reportagem de capa da Time, em 1968: “Se a Aretha o diz, então é importante” – se a Aretha o cantou, reformulemos agora, então foi importante.

Aretha Franklin morreu esta quinta-feira, aos 76 anos, na sua casa em Detroit, rodeada pela família de que era a matriarca desde a morte dos quatro irmãos (os últimos dois em 2002), confirmou o seu agente à Associated Press. Em 2010, tinha-lhe sido diagnosticado um cancro no pâncreas, algo que nunca reconheceu publicamente, referindo-se apenas a um problema de saúde grave e dando conta, ao longo dos anos, de como o fora ultrapassando miraculosamente através do que chamava “curativos de fé”. Apesar do seu estado frágil, nunca deixou de dar concertos – e de os cancelar sem aviso, mas isso não constituía surpresa: faltar a actuações já fazia parte da sua lenda, bem antes dos problemas de saúde (consequências de um agudo temperamento de diva, e a uma diva como Aretha tudo se perdoava).

Desde muito cedo que aqueles que lhe eram mais próximos perceberam a verdade. Aretha só estava verdadeiramente viva no palco, qualquer palco, só se exprimia com total sinceridade, transparente, quando se sentava ao piano. Tinha a música, seu refúgio para todas as emoções, para exprimir aquilo que tinha de mais íntimo e verdadeiro. "Eu sou a minha música", como costumava dizer. E ali, na música, foi insuperável.

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Em Respect: The Life Of Aretha Franklin, biografia não autorizada assinada por David Ritz, o autor conta que um dia, no final de Abril de 1967, uma pequena multidão começou a reunir-se na rua à porta de uma loja de discos. O proprietário colocara um gira-discos no exterior para tocar uma mesma canção ininterruptamente. A canção era conhecida, já que Otis Redding a gravara dois anos antes, encarnando-a com toda a sua habitual intensidade um homem despeitado. Porém, na voz de Aretha Franklin, com os arranjos de Aretha Franklin, aquela mesma canção tornara-se algo totalmente diferente: “R-E-S-P-E-C-T, find out what it means to me, R-E-S-P-E-C-T”, cantou Aretha sobre aquele rhythm’n’blues fervoroso, imaculadamente produzido, e a canção deixou de ser do gigante Otis Redding, deixou de ser a pequena história de um homem despeitado para se transformar em algo muito maior: um grito de alerta e de libertação, um grito feminino e afro-americano, um grito por dignidade, para todos. Respect foi o primeiro grande sucesso de Aretha Franklin e tornou-se a sua canção-assinatura. Estava longe de ser o início da história, mas marcou o início da lenda.

"Tentar crescer é sofrer"

Estamos no virar da década de 1940 para a de 1950. Clara Ward, a grande cantora gospel, começa a entoar os versos de Peace in the valley. “Oh well, I’m so tired and so weary/ But I must go alone/ Till the lord comes and calls, calls me away”, canta a veterana num crescendo de emoção, num fervor espiritual que a leva, no auge do hino, a pegar no chapéu que tem à cabeça e a atirá-lo ao chão. Entre quem assiste àquele momento está uma criança que ouve tudo, que sente tudo, que toma uma decisão. “Foi naquele momento que quis tornar-me cantora”, contou anos depois. A criança era Aretha Franklin e Clara Ward cantou daquela forma que a futura rainha da soul sentiu tão inspiradora, que sentiu como um chamamento, no mais improvável dos cenários. Foi entre os rostos pesados e as roupas negras do funeral de uma tia que Aretha decidiu o seu futuro.

“Posso ter apenas 26 anos, mas sou uma velha mulher disfarçada – tenho 26 a caminho dos 65”, declarava à Time, um ano depois de se ter tornado a cantora mais reconhecida e celebrada dos Estados Unidos, a mulher que se tornou sinónimo da soul, a performer, compositora e produtora genial. “Tentar crescer é sofrer, sabe? Cometemos erros. Tentamos aprender com eles e quando não aprendemos dói ainda mais. E eu fui magoada – fui muito magoada”, confessava. Vivera, e continuaria a viver, entre a transcendência sagrada da igreja, onde cantava nas manhãs, e os prazeres profanos do quotidiano nocturno dos clubes e das digressões, entre o paraíso sonhado e as alegrias, as dores, as lutas e as frustrações da existência terrena. Talvez isso explique a imponência da sua música – o facto de ser vida e superação da vida. Isso, claro, aliado a um dom aprimorado desde muito cedo numa casa, a do pai C. L. Franklin, pregador com contrato assinado com a Chess Records cuja voz tonitruante, a de um pregador intenso, o tornara uma das figuras mais destacadas da sua comunidade.

A casa dos Franklin tinha como visitas habituais Clara Ward e outra gigante do gospel, Mahalia Jackson, um jovem Sam Cooke ou Martin Luther King. Os pais divorciaram-se quando Aretha Franklin tinha seis anos, a mãe morreu quanto tinha dez. Aos 12, partiu pela primeira vez em digressão, acompanhando a intensa agenda de actuações do pai – foi nesse ano que lhe nasceu o primeiro filho. Aos 14 editou o primeiro álbum, Songs of Faith, e aos 18 anos assinou com a Columbia, uma das maiores editoras americanas – três anos antes, fora mãe pela segunda vez (teve quatro filhos ao longo da vida).

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Aretha canta o hino nacional dos Estados Unidos, em 2003 REUTERS

Em 1968, quando foi capa da Time, já trocara a Columbia pela Atlantic. Nesse período gravou Respect, Dr. Feelgood, Chain of fools, Think ou You make me feel (like a natural woman), incluídas nos álbuns I Never Loved a Man (The Way I Love You), a estreia na nova editora, Lady Soul e Aretha Now!. Trazendo para terrenos do rhythm’n’blues o poder transportador do gospel (a soul, portanto), conquistou o sucesso que sempre parecera escapar-lhe na Columbia, apesar da valiosa aprendizagem aí acumulada no convívio e no trabalho com gigantes como John Coltrane ou Charles Mingus – o mítico John Hammond, o A&R e produtor que descobrira Bessie Smith, Billie Holiday ou Bob Dylan, falhou por uma vez ao tentou fazer de Aretha, sem sucesso assinalável, mera intérprete impecável de temas suaves nas proximidades do jazz e do blues. Na Atlantic, porém, Aretha encontrou outro histórico, o produtor Jerry Wexler (Ray Charles, The Drifters, Wilson Pickett, Ruth Brown), que não demorou a perceber o que era necessário. “A minha ideia foi simples: deixar a Aretha ser Aretha. Deixá-la sentir-se confortável. Deixá-la tocar piano. Deixá-la desenvolver os ritmos, as linhas de metais e os coros que lhe iriam abrir o coração e expor-lhe a alma. Deixá-la ir. E se ela foi”, escreveu o produtor, que morreu em 2008, com 91 anos, no texto introdutório da compilação Aretha Franklin – Rare & Unreleased Recordings From The Golden Reign of The Queen of Soul, editada em 2007.

Em 1968, Aretha Franklin estava no topo do mundo, ouvida, admirada e chamada nos quatro cantos do planeta, da sua Detroit a Paris, daí a Tóquio. Em 1968, admirada por todos – do herói Ray Charles à novata Janis Joplin –, confessava a Mahalia Jackson que precisava de gravar um disco de gospel. Precisava de dizer a Deus que não conseguiria carregar sozinha o pesado fardo que a acompanhava. No ano seguinte, divorciava-se, por fim, do abusivo Ted White, o marido 11 anos mais velho, que era também o seu manager, às mãos de quem muito sofreu – casaria novamente em 1978 com o actor Glynn Turman, de quem se divorciou em 1982.

Aretha Franklin foi sofrimento e superação, foi um génio fora deste mundo a tomar-lhe as dores, foi Billie Holliday e Bessie Smith, Ray Charles e Nina Simone. O teclista Billy Preston, colaborador dos Beatles que integrou a sua banda de palco na década de 1970 – como podemos ouvir em Live At Fillmore West, álbum que mostra todo o fervor de Aretha, quer nos seus clássicos soul, quer nas versões de Like a bridge over troubled water, de Simon & Garfunkel, ou de Eleanor Rigby, dos Beatles –, definiu-a da seguinte forma: “Em qualquer noite, quando aquela senhora se senta ao piano e põe todo o seu corpo e toda a sua alma numa canção, é certo que vais apanhar um susto dos diabos. E compreenderás que ela ainda é a melhor cantora que este país todo lixado alguma vez concebeu.”

Foi esse “país todo lixado” chamado Estados Unidos que fez Aretha Franklin e foi nesse país todo lixado que ela floresceu. Foi voz activa da luta pelos direitos civis, ao lado do pai e de Martin Luther King, e ofereceu banda-sonora à consciência e ao orgulho negros com um álbum como Young, Gifted & Black, editado em 1972, e aquele em que encontramos esse insuperável clássico funk intitulado Rock steady – no mesmo ano, deu-nos a conhecer Amazing Grace, álbum duplo totalmente dedicado às raízes gospel e gravado ao vivo numa igreja de Los Angeles.

A última gravação, o último concerto

Nascida a 25 de Março de 1942 em Memphis, Aretha Franklin mudar-se-ia para Detroit aos quatro anos, crescendo no mesmo bairro de Smokey Robinson ou de Diana Ross e numa casa definitivamente musical – os músicos chegavam para jantar e tocavam noite fora com o pai, as irmãs Erma e Carolyn cantavam também (gravaram aliás com ela) e seguiriam igualmente carreira artística. O contrato com a Columbia levou-a para Nova Iorque, de onde sairia, em meados da década de 1970, para Los Angeles. Em 1982, regressou por fim, e definitivamente, a Detroit, para ajudar nos cuidados ao pai, em coma desde que, três anos antes, fora baleado num assalto a sua casa.

O seu estatuto como lenda viva da música popular mantinha-se. Chegara até ao grande ecrã através de The Blues Brothers (1980), mas o sucesso comercial começava a escapar-lhe. Voltaria, porém, a sintonizar-se com o seu tempo, abrançando a estética dos anos 1980 em Who’s Zoomin' Who?, editado em 1985, e no álbum homónimo, lançado no ano seguinte, que incluía uma versão de Jumping Jack Flash, dos Rolling Stones, e I knew you were waiting (for me), dueto com George Michael que escalou ao topo das tabelas de venda mundo fora – na capa, um retrato de Aretha Franklin por Andy Warhol, naquele que foi o último trabalho do artista máximo da Arte Pop antes da sua morte, em 1987.

Continuou a gravar, ainda que forma mais esporádica – nota para A rose is still a rose, que marcou o encontro, em 1998, com uma das suas descendentes, Lauryn Hill, que assumiu as funções de produtora. O último álbum que gravou foi editado em 2014 e intitula-se Aretha Franklin Sings The Great Diva Classics, e o último que lançou, o 42.º da sua discografia, chegou no ano passado – intitula-se A Brand New Me e reúne gravações de arquivo da cantora a novas orquestrações, a cargo da Royal Philarmonic Orchestra.

Com o passar dos anos, a cadência dos concertos começou também a ser menos intensa e cada vez mais localizada – ganhou fobia a aviões e deixou de dar concertos fora do território americano. No ano passado, anunciou a sua retirada dos palcos. Cantou em público pela última vez na gala do 25.º aniversário da AIDS Foundation de Elton John, em Nova Iorque, em que surgiu magra e fragilizada, mas altiva e imponente como sempre. Dela disse o antigo presidente americano, Barack Obama: “Ninguém encarna tão completamente a ligação entre os espirituais afro-americanos, os blues, o R&B e o rock'n'roll, o modo como a adversidade e o sofrimento são transformados em algo cheio de beleza e vitalidade e esperança."

Desde aquele 1967 em que Respect ganhou nova autoria e nova relevância, houve algo que se manteve inalterável, incontestável. Aretha Franklin era a Rainha da Soul. Aretha Franklin é a Rainha da Soul.

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