Le Pen non grata em Portugal? É a soberania nacional

Trata-se de dar uma mensagem política perante um assunto político.

Todas as contas falsas nas redes sociais onde os simpatizantes da extrema-direita se desmultiplicam para parecerem numerosos têm sempre um paradoxal conselho a oferecer: dicas sobre como não fomentar o recrudescimento do fascismo. Estranho, não é? Digamos nós o que dissermos sobre os fascistas, lá estão eles de resposta pronta, “por isso é que a extrema-direita cresce”. O objetivo não é difícil de desvendar — tolher-nos a reação perante o crescimento da extrema-direita — e a lição é óbvia: não se deve aceitar dicas de fascistas anónimos nas redes sociais sobre como devemos comportar-nos perante fascistas no mundo real.

Vem a isto a propósito, é claro, da anunciada presença de Marine Le Pen na Websummit deste ano. Anúncio tão inesperado quanto intermitente. Desde que a notícia apareceu o nome de Marine Le Pen saiu da lista de convidados, voltou a entrar, e agora a organização faz a promessa de que o poderá retirar definitivamente, com uma extraordinária condição: desde que o governo português o peça.

Condição bizarra, mas que tem o mérito de clarificar as coisas. O silêncio do governo português (ou do Presidente), que já era injustificável, será a partir de agora incompreensível.

A organização da Websummit, por cobardia ou por confusão, remete para o governo português uma escolha moral: ser ou não a favor da vinda de Le Pen a Lisboa, para um evento no qual Portugal investiu milhões e a que os mais altos representantes do país têm dado caução política. Até ontem, o governo ainda se poderia escudar no argumento de que a escolha não era sua. A partir de agora, a escolha foi-lhe endossada. Nesse caso, só pode ser uma: se a escolha é nossa, não, não queremos Le Pen em Portugal.

Mas, já ouço a objeção, não será isto um favor à líder da extrema-direita francesa, que depois se poderá vitimizar? Não se deixem enganar por tal argumento. Marine Le Pen vai sempre usar este convite para ganho próprio, façamos nós o que fizermos. Se vier a Lisboa fazer o seu discurso xenófobo, ganhou um comício de borla; se vier com falinhas mansas, ganhará uma operação de charme; se deixar de falar em Portugal, vitimizar-se-á. O mal já foi feito quando lhe fizeram o convite, ajudando a normalizar uma fascista. O que nos compete agora é agir, não segundo os critérios dela, mas segundo os nossos. E Portugal tem por critério, até constitucional, não normalizar fascistas (ou o que quer que eles chamem a si mesmos hoje em dia).

Le Pen não vem a Lisboa no quadro de uma delegação da Assembleia Nacional francesa ou do seu grupo de extrema-direita no Parlamento Europeu, como seria seu direito legal. Vem para a Websummit. Ora, não façamos de conta que a Websummit não é um evento político pago e apoiado por todos nós para promover uma determinada imagem de Portugal. Foi-o quando Fernando Medina mandou pôr cartazes, no dia a seguir à vitória de Trump, dizendo (e bem) que Lisboa era “uma cidade de pontes e não de muros”. Foi-o quando António Costa lá foi falar como primeiro-ministro ou quando Marcelo, como presidente, elogiou o evento. E se-lo-á, de uma maneira ou de outra, tanto se Marine Le Pen lá for falar (no mesmo palco que usou Costa) como se vier entretanto a ser desconvidada. Cabe-nos a nós a escolha de lhe dar palco ou de deixar bem claro que lhe recusamos palco. Não há nenhuma escolha não-política.

A única questão agora é que imagem quer Portugal dar à Europa e ao mundo. Se a imagem do país hesitante, equivocando-se perante a hipótese de pagar uns milhões para “ouvir” o que Le Pen tem a dizer, como se há décadas não fizéssemos outra coisa senão ouvir o que a família Le Pen tem para dizer à Europa, pagando até para isso no Parlamento Europeu. Ou então o país que sabe que valores são os seus, e que está pronto para dizer: Le Pen representa o contrário daquilo que Portugal é, o contrário da nossa posição na Europa e no mundo, e não a consideramos bem-vinda num evento apoiado pelo nosso governo para promover o pais que somos e queremos ser.

É simples. Não se trata de limitar a liberdade de alguém a quem não faltam canais (nem rublos) para se exprimir. Trata-se de dar uma mensagem política perante um assunto político. É para isto que os estados têm a prerrogativa de declarar alguém persona non grata (informação útil: mantém-se consagrada no direito europeu relativo à liberdade de circulação). Use-se. Sim, Marine Le Pen fará uma birra. Respondam-lhe que é a soberania nacional.

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