Atrás da vida entre marés

É preciso esperar pela maré baixa para percorrer os trilhos no espaço entre marés que um projecto de conservação da biodiversidade começou a desenhar em três praias rochosas de Esposende. A partir deles, o Omare quer ajudar-nos a conhecer e valorizar a vida marinha.

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Paulo Pimenta
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Conhecemos São Bartolomeu do Mar pelo banho santo. O esconjuro de medos e maleitas infantis à força de mergulhos em número ímpar está marcado, como sempre, para 24 de Agosto, e nesse dia não faltará gente nesta praia onde falta areia, e muita, e que esta semana a Fugas visitou por outros propósitos: sem galos pretos para cumprir promessas na igreja de beira de estrada, mas de olhos postos no encantamento mágico do Atlântico, e num novo trilho que nos dá a conhecer a vida entre marés.

Não temos um banheiro que nos conte as vagas, e nos empurre a cabeça para o milagre, sem receio. Mas não é preciso. Para lá da barreira de seixos rolados, postos a descoberto, na última década e meia, por um forte processo de erosão que levou daqui toda a areia, a maré está escoada. E perto do fim da vazante, que em semana de marés vivas empurra a água bem para longe, há toda uma cordilheira de penedia a separar-nos da braveza do mar.

A paisagem é aquilo a que os nossos olhos prestam atenção. E aqui podemos chorar a areia perdida, que ninguém sabe se o mar irá algum dia devolver, ou apreciar o que essa nudez nos oferece. É difícil caminhar sobre seixos rolados. Mesmo com calçado, os pés afundam-se, e os músculos parecem não ter resposta para tanta irregularidade, mas não deixa de haver beleza nestes milhões de godos multicolores, que sempre estiveram ali, sob o antigo areal, e que agora fazem parte do cenário em várias praias do concelho de Esposende.

Abaixo deste anfiteatro de pedras lavadas, o recife rochoso, que toma as cores da vida que o habita, é o que nos trouxe aqui, para uma visita guiada pelo biólogo Vasco Ferreira, do Observatório Marinho de Esposende. O Omare tem pouco mais de um ano, mas já fez uma parte importante do seu caminho de inventariação da biodiversidade presente nas águas desta costa que, desconhecerá a maior parte dos que a visitam, fazem parte, há uma década, do Parque Natural do Litoral Norte, criado em 1987. Os resultados já validados podem ser vistos em www.omare.pt.

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Inventariar é importante, mas Vasco recorda que dificilmente se consegue fazer conservação sem o envolvimento do resto da população. A equipa deste projecto liderado pelo município, em parceria com a Universidade do Minho e a entidade gestora do Parque, o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, sabe disso. E qualquer pessoa que visite os 16 quilómetros de praias deste concelho está, aliás, convidada a enviar-lhes imagens e outra informação sobre vida marinha com que se depare nos seus passeios pela praia, ou em mergulhos na costa, para ajudar na monitorização de ocorrências das espécies que aqui existem.

Foi com esse mesmo propósito de envolver os “leigos” - todos nós que não somos biólogos marinhos, afinal - neste esforço de conservação da natureza que o Omare começou também a desenhar um conjunto de trilhos na sua extensa área de intervenção. Três deles, descreve Vasco, desenvolvem-se em áreas que a baixa-mar deixa a descoberto, nas praias de Cepães (Rio de Moinhos), Mar, aqui onde estamos, e na praia da Carruagem, em Belinho, todas elas marcadas pelo recifes rochosos que, albergues de muita vida, foram também responsáveis por inúmeros naufrágios que colocam Esposende na rota da arqueologia subaquática.

A sul de São Bartolomeu, em Rio de Moinhos, está bem estudado o naufrágio de um navio romano e, mais recentemente, em Belinho, a norte, foram descobertos, graças à tempestade Hércules, achados de um navio ibérico do século XVI, que têm sido alvo de uma aturada investigação. Por isso, não espantará que, nos três trilhos subaquáticos que o Omare pretende acrescentar ao trio de percursos à superfície, se possa, um destes dias, dar de caras não com um robalo ou um sargo, mas com alguma peça arqueológica pertencente a qualquer um dos imensos navios que aqui soçobraram, e cujas histórias já deram um livro.

Naufrágios à parte, o único caminho já marcado pelo projecto é, na verdade, a forma mais curta e menos escorregadia que cada um de nós puder escolher para chegar a umas plaquinhas de alumínio presas às pedras, com um número de 1 a 8 e um código QR, legível através de uma banal aplicação de leitura destes estranhos mas úteis desenhos, que estabelece a ligação para uma página do site do Omare com toda a informação sobre o que ali podemos ver. E na qual será possível descarregar o mapa com coordenadas GPS do trilho.

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Guiados por quem o desenhou, estamos, pois, a tentar equilibrar-nos sobre cristas rochosas, visíveis em dia de maré baixa, de uma área ora submersa, ora emersa, para proveito, nestes momentos de maré baixa, de meia dúzia de pescadores que, de bicheiro e ganha-pão, procuram algum polvo ali abrigado nas poças. Mais afastados, já junto à zona de rebentação, outros andarão ao mexilhão, ou às percebes, um artrópode muito apreciado à mesa a que Vasco Ferreira recorre para nos situar os primeiros seres com que nos deparamos, agarrados à rocha como uma lapa.

Não. Apesar da aparência, as cracas não são lapas bebés, como muitos julgarão. São artrópodes também, e por baixo de cada uma daquelas milhares de conchas minúsculas agarradas aos penedos vive um pequeno camarão. E por falar em lapas, na poça defronte da placa número 1 o nosso guia mostra-nos uma espécie delas mais abundante em águas quentes, e que desde 2003 começou a ser notada em toda a costa de Esposende. É, para um biólogo, um bom indicador de alterações das condições deste ecossistema. E para um banhista comum, desses que se queixa das águas frias do Atlântico, é um alento para um mergulho. Afinal, isto já esteve pior.

Também agarrada à rocha negra, em seco, a bodelha é das primeiras algas que nos surge no caminho, empurrando-nos a memória para as histórias das sargaceiras, que outrora a apanhavam nesta costa, vendendo-a para usos medicinais. Ao lado, na poça, outra alga, do género Porphyra, absorve os poucos raios de sol que as nuvens se dignam a deixar passar, esta manhã, indiferente à nossa conversa, que a coloca já a enrolar peixe ou arroz, como na cozinha oriental. Esta é uma espécie comestível (e até cultivada, para o sushi) tal como a comum alface-do-mar, de tom verde-escuro, que o nosso biólogo já experimentou, por exemplo, em omeletes.

A caminho de uma poça maior, Vasco Ferreira detecta um duo de caranguejos de dimensões razoáveis, empurrando-se mutuamente. Poderia ser um caso de amor, mas o biólogo desconfia que o espaço seja demasiado pequeno para os dois, e que estejam a discutir quem sai e quem fica. Deixamo-los assim, na privacidade da bulha, para conhecer uma alga exótica que, oriunda do Japão, chegou à nossa costa nas hélices dos navios, muito provavelmente.

A Grateloupia turuturu foi detectada, entre nós, em 1998 mas, pelo menos neste espaço, parece ter um comportamento menos nefasto do que outra exótica, esta com características invasoras, nota Vasco Ferreira. Trata-se do Sargassum muticum, cujos fios, aparentando uma cabeleira, boiam, cobrindo a superfície da água e escondendo, assim, os raios de sol de que depende a vida. O biólogo do Omare não sabe se este “sargaço” asiático, que até terá sido introduzido através da importação de ostras para aquicultura, também se come, mas admite que a descoberta de um uso culinário poderia ser uma forma de dar valor económico à sua colheita e controle. Que de outra forma é difícil de fazer.

Não falta o que comer por aqui. O Codium tomentosum entra bem nos pratos de tempura, e um tipo de Osmundea, a “pepper dulse”, como lhe chamam os ingleses, tem um travo picante, muito agradável também. Já para as minhocas que, com minúsculos grãos amarelos de areia constroem belíssimos recifes biogénicos, conhecidos como barroeira, não estamos a ver nenhuma receita, mas é sabido o seu uso ancestral como isco na pesca, e bem caro. Mais caro que lavagante, estima Vasco Ferreira, lembrando que a Sabellaria  alveolata, a bicha tão apregoada nestas terras de beira-mar, pode chegar aos 70 euros o quilograma. 

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Entre pescadores de ocasião e apanhadores de percebes, bivalves ouriços ou bicha, não falta quem saiba o valor económico da vida que medra entre marés. Mas, só nas pedras percorridas neste trilho, há toda uma biodiversidade não transferível em euros, e são esses valores que o Omare pretende transmitir e defender, insiste Vasco Ferreira. A maré começa a encher e, por umas horas, alguns destes seres ficarão a salvo do homem. E um dos caranguejos que há pouco vimos à bulha poderá, mais calmamente, escolher uma nova casa.

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