Poderá a violência doméstica ter uma razão evolutiva?

Estudo realizado num povo de caçadores-recolectores e horticultores da Bolívia vem levantar um pouco o véu sobre a razão pela qual determinados comportamentos prejudiciais ao ser humano permaneceram durante a selecção natural.

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Uma família do povo tsimané, onde em média uma mulher tem nove filhos MICHAEL GURVEN

A violência doméstica é uma prática que afecta mulheres em todo o mundo. Várias investigações indicam os chamados “factores de risco” para a ocorrência de agressão física, verbal ou sexual, mas um estudo numa sociedade pré-moderna veio agora revelar que pode existir uma relação entre a violência contra mulheres e a reprodutividade do casal. Mas, esclareça-se já no início, o estudo não faz a apologia da violência doméstica; procura é perceber se existe alguma raiz evolutiva para este comportamento.

O estudo antropológico foi realizado no povo indígena tsimané – uma população de caçadores-recolectores e horticultores isolada da Bolívia – para avaliar a existência das chamadas “raízes evolutivas” na violência entre parceiros íntimos, parte de um projecto que estuda, desde 2001, a saúde e a história de vida deste povo da Amazónia boliviana, que vive em aldeias entre os departamentos de La Paz e Beni.  

Nesta sociedade, não existem instituições jurídicas, políticas ou económicas patriarcais nem exposição mediática e os seus estilos de vida podem ser considerados similares aos das sociedades humanas antigas antes do advento da agricultura há cerca de dez mil anos. Representam uma “cultura sem grande história de violência ou domínio social masculino”, relativamente igualitária, explicam os autores num artigo científico publicado na revista Nature Human Behavior. Apenas 5% das mulheres usam métodos contraceptivos (a maior parte através de um anticoncepcional injectável, disponível nas farmácias mais próximas) e a taxa de fertilidade situa-se à volta dos nove filhos por mulher, pelo que este povo fornece um contexto cultural único para estudar a violência doméstica.

Os investigadores, entre os quais Jonathan Stieglitz, do Instituto para Estudos Avançados de Toulouse (França), e Michael Gurven, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (Estados Unidos), entrevistaram 105 mulheres heterossexuais, em casamentos monogâmicos, de cinco aldeias diferentes. E descobriram que o tamanho familiar ideal é um dos principais motivos de conflito entre os casais desta tribo.

Investigações anteriores entre os tsimané, para as quais já tinha contribuído o antropólogo Michael Gurven, mostraram que, em média, os homens preferem famílias maiores do que as mulheres, o que pode estar relacionado com um menor investimento no cuidado parental e a valorização social de grandes famílias. Isto provoca discordância no casal e dá espaço a conflitos, pelo que a recente investigação procurou averiguar se os homens poderiam recorrer à violência para impor a sua vontade. Outros estudos sobre o povo tsimané já revelaram que os seus hábitos de sono se encaixam na média das sociedades industrializadas, ou a ligação entre certos parasitas intestinais e a fertilidade feminina.

Garantia de descendência biológica 

Nas sociedades modernas, ao longo dos anos foram identificados vários “factores de risco” socioeconómicos, como a pobreza, baixa escolaridade, desvalorização dos direitos das mulheres, e comportamentais, como o abuso de álcool ou drogas e transtornos de personalidade, para a violência doméstica. Porém, segundo os autores deste estudo, permanecia desconhecido o porquê de um indivíduo praticar violência contra o próprio parceiro de vida. O que os levou a questionar se tal comportamento poderá ter sobrevivido à selecção natural devido ao seu impacto no sucesso reprodutivo.

Os dados sugerem que as mulheres tsimané que sofrem de violência por parte do seu cônjuge dão à luz, em média, mais filhos do que aquelas que não sofrem, só tendo sido considerados os casos de abuso físico, por “exibirem maior desigualdade de género”, refere o artigo científico. Das mulheres entrevistadas, 85% relataram terem sido vítimas deste tipo de violência pelo menos uma vez na vida, com maior probabilidade nos primeiros cinco anos de casamento. Porém, o número de ocorrências registado foi relativamente baixo, segundo os cientistas, o que poderá sugerir que a simples ameaça pode ser suficiente para manipular o comportamento sexual.

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As mulheres tsimané têm em média nove filhos MICHAEL GURVEN

“Os maridos que acreditam que devem exercer controlo sobre as actividades das suas mulheres tinham duas vezes mais probabilidade de se envolverem em abuso conjugal”, notam os investigadores em comunicado. A coerção minimiza o risco de infidelidade e leva a um aumento da taxa de reprodução e, por conseguinte, à garantia de descendência biológica, referem ainda os investigadores.

No entanto, os cientistas não exploram os caminhos específicos através dos quais esta violência é exercida, ou seja, se através da violação sexual ou manipulação que leva a mulher a concordar com o acto sexual por medo das represálias que pode sofrer se resistir. Outras limitações do estudo, segundo a própria equipa, estão relacionadas com o facto de não se analisar a violência psicológica nem a violência doméstica contra homens.

Outras variáveis como a violência contra outros homens, a preferência das mulheres por homens com estatuto elevado (que podem ser mais agressivos fisicamente por não sofrerem tantas represálias sociais) ou a exposição à violência doméstica durante a infância foram também tidas em consideração neste estudo, mas não se revelaram factores determinantes. Ao contrário do que acontece com a exposição à violência na infância em populações industrializadas, “nas quais um ciclo pernicioso de violência se perpetua, muitas vezes, de uma geração para a outra”, avança ao PÚBLICO Jonathan Stieglitz. 

Os resultados indicam que, entre o povo tsimané, a violência é usada como uma manobra estratégica dos homens para aumentarem o seu sucesso reprodutivo, podendo fornecer vantagens adaptativas. Levanta-se, assim, um pouco o véu sobre a razão pela qual a propensão para determinados comportamentos prejudiciais ao ser humano permaneceu durante a evolução. Um outro exemplo de um comportamento há muito desconcertante para os biólogos, e que não foi eliminado pela selecção natural, é o altruísmo, que, pelo contrário, implica prejuízos para o próprio indivíduo, dando primazia aos interesses do outro.

Mas, sendo este um estudo de casos, importa ter em atenção o contexto e não fazer generalizações. “Seria errado dizer que a evolução favorece a violência praticada pelo parceiro íntimo, ou que o abuso conjugal é adaptativo”, tendo em conta que não foram estudadas as gerações seguintes e esta prática varia amplamente entre países e ao longo do tempo, atenta Jonathan Stieglitz, em informação que enviou ao PÚBLICO. O antropólogo não acredita ainda que existam traços genéticos hereditários no que diz respeito a este tipo de violência, considerando que este comportamento “é influenciado pelo contexto ambiental”. 

“Problema social terrível e generalizado”

Apesar de ser necessário cautela na abordagem de comportamentos condenáveis a partir de uma perspectiva evolutiva – por se recear que ao sugerir que uma conduta é “favorecida pela selecção natural possamos estar a concordar” com ela –, compreender as suas causas primárias é essencial para desenvolver a melhor forma de os prevenir, refere um resumo da Nature Human Behavior.  A violência contra mulheres é “um problema social terrível e generalizado, que destrói vidas em todo o mundo”, sublinha Jonathan Stieglitz.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço das mulheres em todo o mundo já sofreu de violência física ou sexual nas mãos de um parceiro. Em Portugal, desde Janeiro até 30 de Junho de 2018, já foram assassinadas 16 mulheres vítimas de violência de género, das quais 11 mantinham relações de intimidade com o homicida, segundo dados da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta.

Compreender as suas causas “é fundamental para o desenvolvimento de intervenções eficazes que minimizem a incidência da violência por um parceiro íntimo”, considera ainda Jonathan Stieglitz. A solução passa por uma mudança nas leis, tal como aconteceu na Nova Zelândia, em Julho, onde foi aprovada uma licença laboral para vítimas de violência doméstica. Importa ainda, sublinha o investigador, ter uma maior consciencialização sobre as dinâmicas de poder nos relacionamentos e a desigualdade de género, que deve “ir além do próprio casal e incluir a comunidade em geral para ajudar a moldar a opinião pública” e prevenir a violência contra mulheres. 

Texto editado por Teresa Firmino

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