O assédio sexual não é trivial nem normal: é violência!

Marie Laguerre não aceitou a atenção sexual que lhe foi imposta por um desconhecido. O assédio sexual surge como uma forma de vigiar, controlar e subalternizar as mulheres que, muitas vezes, se vêem limitadas na sua liberdade e autodeterminação.

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Manuel Roberto / Publico

É um dia normal. Na capital francesa uma jovem mulher caminha numa rua movimentada quando é assediada por um homem com quem se cruza aleatoriamente. Este episódio poderia ter acontecido a qualquer mulher, em qualquer dia, em qualquer rua de qualquer cidade sem merecer qualquer tipo de atenção, mas desta vez o desfecho foi diferente. Marie Laguerre não aceitou a atenção sexual que lhe foi imposta por um desconhecido, não a reconheceu como uma componente normal da sua vivência do espaço público, não teve medo e não se calou. Manifestou verbalmente o seu desagrado para com a importunação que acabara de sofrer e foi esbofeteada pelo agressor. 

Após a agressão, a jovem não se “colocou no seu lugar”, nem deixou que a humilhação que sentiu lhe tirasse a capacidade de agir. Solicitou o vídeo com a gravação do episódio que a vitimou ao proprietário do estabelecimento comercial junto do qual foi agredida, e denunciou publicamente a situação através das redes sociais. A reacção não tardou: o vídeo viralizou e com ele a indignação de milhares de pessoas. A discussão pública sobre o assédio sexual e o seu impacto no acesso das mulheres ao espaço público entrou na agenda mediática e o governo francês decidiu: o assédio sexual em espaço público não é aceitável e os responsáveis por comentários sexistas, obscenos, hostis, intimidatórios, degradantes, ofensivos ou humilhantes estão sujeitos a multas que podem ir dos 90 aos 750 euros.

Esta decisão surge no mesmo país onde, recentemente, um grupo de mulheres se afirmou, de forma reaccionária, contra o movimento #MeToo, defendendo a “liberdade de importunar” como uma componente indispensável da liberdade sexual. O episódio que vitimou Marie Laguerre demonstra claramente que o assédio sexual não é excepcional na vida de grande parte das mulheres, e que nada tem a ver com sedução nem elogio. A sedução diz respeito a formas de comunicação verbal e não verbal baseadas em reciprocidade, consentimento e mútuo prazer. O elogio, por sua vez, é um acto de generosidade, valorização e reconhecimento de outra pessoa. Não se confundam!

O assédio sexual é um exercício de poder de uma pessoa sobre outra, que se vê despessoalizada e privada da sua dignidade. Define um conjunto de actos de importunação sexual, onde a pessoa assediada surge como um corpo disponível para ser comentado, olhado de forma incisiva e tocado. O assédio sexual enquadra-se na definição mais ampla de violência de género por afectar, maioritariamente, mulheres, sendo um comportamento perpetrado fundamentalmente por homens. Em espaço público, predominantemente dominado por homens, o assédio sexual surge como uma forma de vigiar, controlar e subalternizar as mulheres que, muitas vezes, se vêem limitadas na sua liberdade e autodeterminação. Quantas mulheres atravessam a rua para evitar um determinado grupo de homens? Quantas mulheres desviam o olhar para tentar fugir a algum contacto mais abusivo? Quantas evitam passear em determinadas ruas mesmo que isso signifique andarem mais? Quantas não sobem o decote ou não baixam a saia para evitar atenções indesejadas?

Em Portugal, as formas de assédio de rua consideradas mais graves foram criminalizadas em 2015. No rescaldo da Convenção de Istambul, a Lei n.º 83/2015 do artigo 170º do Código Penal determinou que “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias (...)”. Este primeiro passo foi fundamental no caminho da desaceitação social do assédio sexual; no entanto ainda há muito a fazer e muitas perguntas a formular: qual a voz e a credibilidade dada à vitima na denúncia de situações de formulação de propostas de teor sexual? Como são processadas as denúncias? Quais as consequências reais para os agressores? Até quando é que o “piropo” continuará a ser confundido com elogio?

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