Para Ted Hope, o cinema não é apenas o sofá lá de casa

Ted Hope produziu Ang Lee, Todd Haynes ou Hal Hartley e hoje está ao comando da produção de cinema da Amazon. Em Locarno, recebeu um prémio pela sua carreira e falou do cinema como uma experiência comunal, insubstituível.

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Ted Hope em Locarno, após receber o prémio Raimondo Rezzonico ALEXANDRA WEY/EPA

“O que queremos é fazer qualidade, coisas excepcionais, e como não somos algoritmos às vezes falhamos.” Quem o diz é um dos nomes centrais na emergência do cinema independente americano na década de 1990. Por si só, o nome de Ted Hope não dirá grande coisa aos leitores. Mas se começarmos a alinhar os filmes que produziu a coisa é capaz de fiar mais fino: O Banquete de Casamento, Comer Beber Homem Mulher ou A Tempestade de Gelo de Ang Lee; Felicidade ou Storytelling – Conta-me Histórias de Todd Solondz; Seguro de Todd Haynes; American Splendor de Shari Springer Berman e Robert Pulcini; Martha Marcy May Marlene de Sean Durkin; Uma Questão de Confiança, Homens Simples, Amador ou Flirt de Hal Hartley…

É nessa condição de produtor cinematográfico que Ted Hope veio a Locarno: é um dos convidados de honra do festival suíço, recebendo o prémio Raimondo Rezzonico, entregue a um produtor com currículo no cinema independente (outorgado em anos anteriores a Paulo Branco, Jeremy Thomas ou Menahem Golan). Produtor, sim, mas reformado desde 2015, altura em que assumiu o cargo de responsável da Amazon Studios, a divisão de produção cinematográfica do gigante das compras online fundado por Jeff Bezos. 

O gosto “vai-se refinando”

Há uma ironia em ver o apoiante de algumas das vozes mais idiossincráticas do cinema americano recente a conduzir os destinos da produção uma “empresa de conteúdos”, e essa contradição não ficará resolvida em 25 minutos de encontro com a imprensa. Mas uma lista parcial de títulos que a Amazon tem financiado ou distribuído ao longo dos últimos três anos comprova que Hope não está nisto só pelo dinheiro: Chi-raq de Spike LeeCafé Society Roda Gigante de Woody Allen, Manchester by the Sea de Kenneth Lonergan, Paterson de Jim JarmuschEu Não Sou o Teu Negro de Raoul Peck, A Cidade Perdida de Z de James GrayNunca Estiveste Aqui de Lynne Ramsay…

“Consoante formos expostos a mais coisas de qualidade, vamos querer e procurar mais coisas boas, o nosso gosto vai-se refinando,” defende o executivo da Amazon no luxuoso hotel Belvedere. “Quando tinha 17 anos, eu não tinha visto a variedade de filmes que o meu filho já viu, tinha de ter muito mais trabalho. A capacidade dele de andar à procura de coisas na Amazon e no Netflix e nos sites de torrents permitiu-lhe compreender o panorama global de uma maneira que eu não consigo e provavelmente nunca conseguirei. Ele pergunta-me se vi o El Topo do Jodorowsky ou o Zabriskie Point do Antonioni. E isso dá-me a entender que o grande falhanço da nossa indústria é a nossa incapacidade de criar um “santo graal” – aquele objecto que procuramos e que queremos tanto que vai definir a nossa identidade e o nosso estatuto na comunidade. Quem está no poder apenas está interessado em manter o statu quo, sem perceber que tem de abrir as portas e tentar coisas novas. Podemos todos beneficiar disso.”

Sempre com “as mãos na massa”

Hope deixou de pôr as mãos na massa na produção – “e garanto-lhe que não tenho saudades nenhumas de receber às duas da manhã um telefonema de um realizador que precisa de reservar uma mesa num restaurante!” – e não tem forçosamente saudades disso. Mas sim, eram outros tempos. Aponta que, nos 30 anos entretanto decorridos, a indústria mudou muito. “Nos meus primeiros filmes, eu fazia de tudo,” explica Hope, “desde a direcção de produção no terreno à supervisão da banda sonora ao controlo da pós-produção. Hoje, a Marvel tem uma equipa de filmagens para os actores e outra para as cenas de acção, a maior parte dos filmes tem toda uma equipa de pós-produção separada da parte de rodagem, e todo o lado contratual e legal consome muito mais tempo – autorizações, contratos, relações com agentes, empresários, actores, distribuidores… Fico contente por poder ter quem trate dessas questões por mim. Mas gostarei sempre de continuar a pôr as mãos na massa.”

De certo modo, Hope começou a produzir com toda uma geração de cineastas que se foi revelando fora da indústria – “o Hal Hartley ou o Todd Solondz já sabiam exactamente o que queriam fazer, desde o princípio, e sabiam comunicá-lo”. Ainda será isso possível hoje, perguntamos? A resposta do produtor é longa, mas incisiva. “A nossa indústria interpreta muitas vezes mal o presente – vê como um fim ou um princípio aquilo que muitas vezes não passa de um ponto num espectro muito alargado. Produzir um filme tornou-se muito barato e apareceram muitos filmes numa altura em que estávamos a passar de um modelo baseado na escassez, em que havia poucos filmes e acesso limitado, para um modelo baseado na abundância, em que temos acesso ilimitado. Mas só porque passámos de 500 para 5000 isso não é abundância nenhuma no cômputo geral. Só temos duas plataformas globais de streaming [a Amazon e a Netflix] e temos mais 15 que já mostraram interesse. Se essas novas entradas gastarem 15% do que as outras já estão a gastar, vamos ter ainda mais material a aparecer! Para se tornarem competitivos vão ter de apanhar aquilo que vier à rede. E isso tanto pode gerar trabalho fantástico, como na Hollywood nos anos 1970, como uma avalanche de mediocridade.”

O que é preciso são filtros

O que é preciso, diz Hope, são filtros – “aqueles que verdadeiramente adoram cinema estão a perguntar-se como é que encontram aquilo de que gostam”. “Por um lado, os festivais de cinema são um filtro que pode servir de guia – é essa a importância dos críticos –, mas, por outro, as pessoas também querem uma maneira simples de ver as coisas. E o que as pessoas querem não é apenas uma versão maior e mais confortável do sofá lá de casa. As pessoas adoravam os clubes de vídeo porque havia uma interacção, recomendações de pessoas que conheciam. Queremos experiências autênticas, algo que seja só nosso, que dependa de estarmos no sítio certo no momento certo.”

É por isso que Ted Hope continua a acreditar que existe espaço para o cinema em sala. Ao contrário da concorrente Netflix (que apenas coloca as suas produções em sala num ou dois países), os filmes da Amazon fazem primeiro o circuito tradicional de salas, porque Hope acredita que a experiência do cinema é insubstituível. “Não é a mesma coisa ver um filme em casa no sofá e sair de casa para o ir ver num cinema, com outras pessoas. Começamos a reconhecer que ver algo com outras pessoas é diferente de o ver sozinhos. Adoro que o espectador ao meu lado esteja lavado em lágrimas, adoro estar num cinema onde as pessoas reagem de maneiras diferentes. E as pessoas começam a perceber que há nisso coisas que preferem a ficar em casa. Acho que vamos voltar aos tempos em que ir ao cinema era uma ocasião, uma experiência.”

O PÚBLICO está em Locarno a convite do Festival de Locarno

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