Estado tem quase 200 obras de arte do ex-BPN fechadas num cofre

O conjunto de peças que sobrou do caso dos Miró conta com trabalhos de Souza-Cardoso, Vieira da Silva e Paula Rego. Está há dez anos longe da vista e, agora, está à venda.

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daniel rocha

O veículo público Parvalorem, que gere três mil milhões de euros de activos tóxicos do antigo BPN, mantém num “cofre” quase 200 obras de arte com um valor de balanço de 3,5 milhões de euros, e cujo destino está a aguardar clarificação do Governo. Trata-se de um espólio com trabalhos de 88 artistas portugueses, de épocas e de escolas distintas, como Amadeo de Souza-Cardoso, Maria Helena Vieira da Silva ou Paula Rego.

Contactado, o Ministério das Finanças não elucidou o que pretende fazer ao acervo artístico e cultural na esfera da Parvalorem, veículo que tutela. Por sua vez, o presidente da empresa Francisco Nogueira Leite explicou que desenvolveu “oportunamente conversações com o Ministério da Cultura e aguarda uma clarificação, por parte do Estado, quanto ao eventual interesse de que uma parte das obras, ou a sua totalidade, permaneça na esfera pública, encontrando-se uma decisão final ainda em aberto”.

O gestor adiantou que “as obras em relação às quais não venha a existir interesse” serão “provavelmente alienadas, a seu tempo e através de processos competitivos”.

O inventário do património artístico e cultural está feito. Os relatórios falam em 195 obras (Nogueira Leite refere 194) e 155 estão assinadas por 88 artistas portugueses (as restantes são de 31 autores estrangeiros de 15 nacionalidades). E “na sua grande maioria foram transmitidas pelo BPN no momento da sua reprivatização, ou foram posteriormente recebidas em dação, para pagamento de dívidas”. Ou seja: desde 2012.

Nogueira Leite destaca “três quadros com um contrato de depósito com a Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, sendo dois de Maria Helena Vieira de Silva [a obra Les Berges], e um do pintor Árpád Szenes”.

As restantes 192 obras do acervo da Parvalorem estiveram guardadas na antiga sede do BNU, em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro, que pertencia à Caixa Geral de Depósitos, o banco que geriu o BPN entre a nacionalização, em 2008, e a privatização, em 2012.

Em 2016, o espólio mudou de morada. Nogueira Leite revela que se encontra agora depositado “numa entidade especializada no armazenamento e transporte de obras de arte, com todas as condições de segurança 24 horas por dia e cobertas por adequados seguros”.

Com excepção dos três quadros confiados à Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva, todos os outros estão resguardados dos “olhares” dos contribuintes que podem vir a perder com o antigo BPN qualquer coisa como sete mil milhões de euros.

E uma dessas obras, a Cabeça Mongol – emprestada em 2016 e em 2017 aos museus Nacional Soares dos Reis e Nacional de Arte Contemporânea do Chiado para ser exposta temporariamente –, é da autoria de Amadeo de Souza-Cardoso, que pertenceu à primeira vaga de pintores modernistas (1987-1918). 

Do cofre alugado pela Parvalorem constam três acrílicos sobre papel colado em tela de Paula Rego, dois de 1985 e um de 1974 (um baptizado de Burro, Burro) e três peças em fotografia de Helena Almeida. Mário Cesariny, Rui Chafes, Ana Vidigal, Pedro Calapez, Pedro Casqueiro, Jorge Martins, João Pedro Vale, Carlos Calvet, Vasco Araújo, Joaquim Rodrigo, Eduardo Nery, João Penalva, João Vieira, Eduardo Batarda, António Sena, José Pedro Croft, Nikias Skapinakis, Dacosta, Carlos Calvet e Pedro Gomes, António Palolo, Fernando Calhau, João Louro, Nadir Afonso, José Loureiro, António Charrua e João Tabarra são nomes também representados.

Um conjunto de 195 obras com “um valor líquido de balanço de 3,5 milhões de euros”, a que a Parvalorem atribui um preço de mercado de “aproximadamente, 5,4 milhões de euros”.

Foi este acervo que o anterior executivo de Passos Coelho destacou para ser rentabilizado nos mercados, intenção que o actual Governo de António Costa ainda não mudou, pelo menos, de forma pública.

O último relatório e contas publicado pela Parvalorem refere mesmo que, “antecipando o processo de alienação das obras”, foi “partilhada com “várias entidades públicas com relevância no sector” uma “listagem” dos trabalhos para apurar do interesse em manter as obras na esfera pública. E da resposta enviada pelo veículo ao PÚBLICO depreende-se que não houve reacção.

O acervo artístico e cultural da Parvalorem/Parups tem sido alvo de muita polémica. E até começou por ser bem maior, com 283 peças que incluíam 85 trabalhos do espanhol Joan Miró (datados entre 1924 e 1981), avaliados em balanço por 45,3 milhões de euros.

Em 2013, Pedro Passos Coelho considerou-os sem interesse para o Estado português e a Parvalorem contratou a leiloeira Christie's para vender o acervo no mercado internacional.

Numa ida ao Parlamento, a então secretária de Estado do Tesouro, Maria Luís Albuquerque, defendeu a venda dos “quadros Miró”, sustentando que a sua preocupação principal era “a maximização das receitas” para “reduzir o endividamento do Estado”. Em 2014, Nogueira Leite mostrou idêntica sensibilidade, pois numa ida a São Bento apoiou o leilão de Londres: “Quanto mais tarde se amortizar dívida, mais juros teremos de pagar.”

Na altura, o PS estava na oposição e foi rápido a actuar. Avançou com uma providência cautelar para travar a venda e os dois leilões agendados em Londres acabaram cancelados. As 85 obras (incluindo seis pinturas sobre masonite de 1936 e seis sobreteixims de 1973) regressaram à base.

Finalmente, em Dezembro de 2017, António Costa, considerou-as “de inestimável valor cultural”, integrando-as “no Património Cultural do Estado Português”, parqueando-as na Fundação de Serralves, onde em 2016 foram mostradas ao público pela primeira vez com grande êxito, com cerca de 250 mil visitas.

Expurgado das obras do pintor catalão, o espólio da Parvalorem reduziu-se para 195 peças. No entanto, há dois registos distintos nos balanços: o de 2015, retirando as 85 obras de Miró, referia um acervo de 198 trabalhos orçados em 3,6 milhões de euros. No ano seguinte, em 2016, a empresa adiantava outros números: 195 obras a valerem 3,5 milhões de euros. Uma discrepância de três peças e de 100 mil euros.

No email dirigido ao PÚBLICO, Nogueira Leite menciona um acervo de “194 quadros”, inferior à informação que consta do balanço. Mas garante que não houve vendas desde 2015 e explica as diferenças com as oscilações das avaliações. Assegura mesmo “que qualquer suspeita de desaparecimento de peças é totalmente falsa”.

Em Novembro de 2008, o BPN foi nacionalizado com estrondo ao colapsar alvo de uma mega burla perpetuada ao longo de anos pela gestão chefiada por José Oliveira Costa, condenado a 14 anos de prisão. Em 2012, a instituição foi vendida ao EuroBic.

No relatório de 2016, o Tribunal de Contas apurou que “o saldo acumulado das receitas e despesas orçamentais decorrentes da nacionalização e reprivatização do BPN” resultava num prejuízo para o Estado de 3,66 mil milhões de euros. E os passivos das sociedades-veículo Parvalorem/ Parups/ Parparticipadas situavam-se em torno dos quatro mil milhões de euros, o que se podia traduzir em mais perdas para os contribuintes. Ou seja, no final, o erário público pode vir a suportar perdas de mais de sete mil milhões de euros.

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