Português que resgatou refugiados no Mediterrâneo é acusado de ajuda à imigração ilegal

Ajudou milhares de refugiados a chegar à Europa. Viu o desespero de muitos. Mas o navio para o qual trabalhava foi impedido de circular nas águas italianas, como aconteceu a outras ONG de resgate. Agora o Ministério Público italiano acusa Miguel Duarte de auxílio à imigração ilegal.

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Rui Gaudêncio
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REUTERS/Stefano Rellandini

Aos 25 anos, depois de estar no Mediterrâneo a resgatar milhares de pessoas vindas de vários países, o português Miguel Duarte foi notificado oficialmente pelo Ministério Público italiano. Na nota, enviada no final do mês passado, informavam-no de que estava sob investigação por auxílio à imigração ilegal.

Não foi completamente apanhado de surpresa, já que um ano antes, a 2 de Agosto, o Governo italiano apreendeu o navio onde Miguel Duarte fazia voluntariado, o Iuventa, da Jugend Rettet, organização alemã responsável pelo resgate de 14 mil pessoas desde 2016 juntamente com outras organizações não governamentais (ONG).

O português, que neste momento está a completar o doutoramento em Matemática no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, tornou-se um dos dez tripulantes do Iuventa que agora se vêem no meio de um ataque às organizações que salvam refugiados embarcados na Líbia em direcção à Europa. Além deles, mais 12 pessoas de outras organizações estão acusadas do mesmo crime, acrescenta a Jugend Rettet.

A Jugend Rettet foi uma das ONG (entre uma dezena que actuaram no Mediterrâneo) que se recusaram a assinar um código de conduta proposto por Roma. O código sugeria, por exemplo, que cada embarcação tivesse um polícia armado a bordo, que estivessem sempre localizáveis e que não entrassem em águas territoriais líbias. Por considerar que o código iria dificultar o trabalho de uma entidade cuja prioridade é salvar vidas, a Jugend Rettet sugeriu revê-lo e estabelecer um diálogo com um mediador neutro, como a Organização Marítima Internacional da ONU. Foi recusado.

O procurador de Trapani, na Sicília, que fez a acusação, disse, na altura, que a investigação não tinha ligação à não assinatura do código, mas afirmou à Reuters ter provas “de encontros entre traficantes, que escoltaram imigrantes ilegais até ao Iuventa, e membros da tripulação”.

Miguel Duarte refuta. “Não temos relação alguma com traficantes líbios, não comunicámos nem tentámos comunicar com eles nem eles connosco”, comenta em entrevista ao PÚBLICO. Nunca se cruzou com um traficante e diz mesmo que duvida de “que algum” deles “se pusesse num barco daqueles”. “É uma acusação política, basta ver que toda a campanha eleitoral em Itália foi anti-imigração e anti-ONG de resgate. Disseram-se as maiores barbaridades para incutir medo nas pessoas. Foi a forma que a Itália arranjou de nos travar — estamos sem operar há um ano. Já muita gente terá morrido — o que seria evitável.”

Aliás, nota, todas as operações de resgate foram feitas em coordenação com o Centro de Coordenação Marítima de Roma (CCMR), a agência do Governo italiano responsável por coordenar aquela zona: “Não se passa nada que eles não saibam.”

Miguel Duarte está a ser assistido por um advogado italiano e a ONG “tem recolhido contribuições para um fundo legal que deverá” pagar os custos do processo.

Treino em Malta

Mas o que leva um português a voluntariar-se para uma ONG alemã com a missão de resgatar refugiados? Depois de acabar o mestrado no Verão de 2016, e com vontade de fazer ajuda humanitária, Miguel Duarte soube, através de amigos alemães, desta entidade que estava a arrancar actividade. Candidatou-se, entrou e “não pensou duas vezes” quando percebeu que podia aceitar fazer parte da tripulação.

Fez a primeira missão, com a duração de três semanas, em Outubro de 2016, começando “numa espécie de quartel-general” em Malta onde era dada formação e treinos à equipa. Ali aprendiam pilotagem ou como dar resposta a vários tipos de problemas de emergência (como abordar alguém que está em pânico, como tirar pessoas inconscientes da água, como fazer reanimação...).

O Iuventa, antigo navio de pesca relativamente pequeno, tinha capacidade para uma média de 100 pessoas a bordo. “Em situações mais dramáticas, acabámos por ter umas 500, o que é desaconselhado, mas só o fizemos porque havia risco de afogamento”, explica. Que saiba, isso aconteceu apenas duas vezes — e numa delas ele estava a bordo.  

O jovem português pertenceu à equipa do speed boats, “que fazem o primeiro contacto e distribuição dos coletes de salva-vidas e tiram as pessoas do perigo” que estão a viver no mar. O seu papel era estar na proa do barco a estabelecer contacto com os migrantes: “É preciso ter alguma facilidade de comunicação e sensibilidade para perceber o estado de espírito das pessoas. Porque muitas vezes estão em pânico e é difícil seguirem as nossas ordens. Mas é absolutamente necessário que o façam. É uma situação muito stressante, correm perigo de vida a todo o momento: vêm em barcos de borracha com 150 pessoas e basta um passo em falso para o barco rebentar e irem para dentro de água. Aí é uma catástrofe, não temos capacidade de tirar as pessoas rapidamente.”

Isso chegou a acontecer perto das águas nacionais líbias. Em Junho de 2017, o mar esteve calmo durante duas semanas. Chegavam milhares de pessoas por dia. “Entre nós e outras ONG, não tínhamos capacidade para responder. A 26 de Junho o navio da Save the Children pediu-nos auxílio e quando chegámos ao local encontrámos cinco barcos de madeira, o mais pequeno com 200 pessoas e o maior com 700 pessoas — estes barcos são um terror, porque viram com muita facilidade. Os nossos pequenos navios não tinham capacidade para responder. Fomos dando resposta a situações mais urgentes: crianças, mulheres grávidas, pessoas com queimaduras por causa da gasolina de má qualidade misturada com água salgada que arranca a pele, pessoas que chegam em muito mau estado de saúde... O que fizemos foi contactar o CCMR e tentar que fossem accionados todos os meios. Mesmo assim perdemos várias pessoas.”

Resgatou muita gente da Nigéria, cristãos a fugir da guerra com o Boko Haram, pessoas a fugir da guerra do Sudão do Sul e da ditadura da Eritreia e até um barco com 25 crianças sírias. “Até começar a primeira guerra civil da Líbia, em 2011, Muammar Kadhafi mantinha as fronteiras abertas para trabalhadores da África subsariana virem para a Líbia, quando a guerra estalou, os imigrantes foram os primeiros a fugir. Desde essa altura a Líbia ficou muito pior. Vimos pessoas com todo o tipo de marcas pelo corpo, são torturados, fogem da escravatura.”

Não sabe ao certo quanto paga cada pessoa para entrar no barco, mas ouviu falar “de valores entre 500 e 600 euros por pessoa”. Isto é “um negócio milionário”.

“Pressão psicológica”

Ao todo, Miguel Duarte esteve em quatro missões, cada uma de três semanas: “Não deixavam fazer muitas seguidas, por causa da pressão psicológica. Temos reuniões de stress pós-traumático, antes e depois das missões.”

Nos intervalos, passou dois meses na Grécia a trabalhar com a Plataforma de Apoio aos Refugiados portuguesa, esteve nos campos da Turquia e ainda foi a Veneza fazer reparações no navio.

Analisa: neste momento, parece existir “uma conjugação” para que os resgates no mar por ONG acabem. “A Sea-Watch, pioneira no resgate, está impedida de sair por irregularidades no registo do navio; o Lifeline ficou preso em Malta, o Aquarius está impedido de aportar em Itália e Malta, e dois pequenos aviões de busca estão impedidos de levantar voo. Não existem observadores, não sabemos quantas pessoas estão a afogar-se.” Quanto à acusação de que as ONG incentivam o fluxo de migrantes, diz que não existe nenhum estudo que o prove: “Há muitos estudos académicos que dizem o contrário.”

De qualquer forma, afirma que a ONG para a qual trabalha não se vê a si própria como “solução para o problema”, mas sim “uma espécie de penso rápido”, “uma resposta de emergência à falta de actuação dos governos europeus”. “Fazemos o resgate porque não queremos deixar as pessoas morrer.”

O essencial é que se criem condições para as pessoas viverem nos seus países — mas, enquanto isso, é necessário garantir às pessoas que “podem vir de maneira digna e segura para a Europa quando requerem asilo”.  

Por enquanto, está a fazer o doutoramento, mas quer continuar a participar. “Sou uma pessoa privilegiada a viver num país em paz há muito tempo. Foi-me oferecido tudo para ter uma vida confortável. Quando estava a tomar consciência global, estalou a crise. Pensava: ‘Sou jovem, tenho capacidades físicas e mentais, não tenho nada que me limite.’ Por isso tenho responsabilidade de fazer alguma coisa. Quero participar e não ficar a observar.”

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