O último contrabandista do Guadiana, aos 97 anos, ainda padece de amores e saudade

Atravessou o rio vezes sem conta a puxar, com uma corda presa aos dentes, sacos cheios de café . À carga habitual, em cada frete, levava a reboque um ou dois emigrantes clandestinos.

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O rio Guadiana sempre foi a estrada da vida de Ildefonso Martins – 97 anos, bem vividos. Profissão? “Contrabandista diplomado apresenta-se”. Vai um copinho de vinho caseiro? Para início de conversa, ao princípio da manhã, nada mau. “Chamavam-me o capitão do bando”, revela. À boa maneira dos heróis solitários, vive num casebre de pedra solta, em Balurcos de Baixo, na serra de Alcoutim, rodeado de galinhas. “Tinha os meus contactos, e sabia como escapar [ao controlo policial]”. Mudaram-se os tempos, mas a vontade de furar as malhas da lei permanece. Mesmo depois da abertura das fronteiras, diz, “há sempre coisas para vender”.

Ao volante de uma velha carrinha, o “capitão” continua a fazer incursões de amores e saudade, por terras de Espanha, onde tem três filhos. Do único casamento, à força, (obrigado a casar, porque a namorada ficou grávida, quando cumpria serviço militar) tem mais um filho português, a viver em Olhão. “As espanholas são muito bonitas”, observa. Por isso, as antigas paixões ainda lhe fazem acelerar o coração. “Passo, de quando em vez, uma semana em El Rocío – levo o acordeão, toco “sevilhanas” e uns tangos, e a festa acontece”. O vaivém entre as duas margens do rio ainda hoje é uma constante, mas a base de apoio está em Portugal. “Tenho uma boa casa e propriedades em Lepe (Huelva), mas é aqui [Balurcos] que me sinto bem”. 

Do historial das muitas viagens que fez, levando café e a trazendo miolo de amêndoa ou bebidas, só regista um acidente de percurso. “Um rapaz, do Azinhal, filho de um guarda-fiscal, disse-me que sabia nadar, e afinal não sabia – morreu afogado”. Para ser um bom profissional do contrabando, adverte, “tem que se saber nadar bem, e ler nas estrelas o caminho a seguir, em terra”. Dias de folga não existiam. “Só quando a lua estava na fase da lua cheia”. A travessia do rio obedecia a um plano previamente estudado, para aproveitar a embalagem da corrente, e escapar às vigilâncias da guarda. A operação demorava cinco ou seis minutos. “De Inverno custava um bocado”, admite. Mas o crime compensava. “Ganhávamos bom dinheiro, comprava por cinco, vendia por doze”. O transporte terrestre fazia-se em mulas, por caminhos quase secretos. “A minha mulher, de São Silvestre [localidade a seis quilómetros da fronteira], tinha jeito para enganar a Guarda Civil – conseguia passar café, fingindo que era tremoços para os porcos”.

O Festival do Contrabando - evento organizado pela câmara de Alcoutim desde há dois anos - constitui um momento de partilha de histórias de vidas forjadas na clandestinidade. Porém, o mais velho protagonista dos grupos que operavam no baixo Guadiana recusa-se a participar. “Sim, gostava de um dia ser lembrado”, confessa este herói desconhecido. Mas o formato do evento que atrai milhares de turistas à vila não faz o seu estilo. “Fui lá uma vez, ouvi um espanhol falar de coisas que não sabia, virei as costas”. Da vigilância e perseguição das autoridades, portuguesas e espanholas, não se queixa. Pelo contrário, acha que os guardas são “gente boa” com quem partilhou, não apenas amizade. “Tinha tudo controlado, dando algum para fecharem os olhos”, confidencia.

A transacção das mercadorias fazia-se dentro de sacos (emborrachados), puxados por uma corda, de seis a sete metros, presa aos dentes. A esta operação, efectuada à noite, Ildefonso Martins costumava acrescentar uma carga complementar. “Levava mais um ou dois homens, agarrados ao saco. Também fui passador”. Pelo auxílio à emigração clandestina cobrava para cima de 3 mil pesetas. “Mas tinha de dar uma parte ao chefe da polícia de Ayamonte, estava tudo combinado”.

Apenas uma vez as coisas deram para o torto. “Um sargento da Guarda Civil chamou-me ladrão, e eu respondi: ladrão não, contrabandista”. Palavra puxa palavra, o diálogo crispou: “Arriei-lhe um soco no cachaço e fui detido”. A agressão à autoridade valeu-lhe cerca de seis meses de prisão. O tal amigo, chefe da polícia, recorda, mandou levar um galo caseiro. “A minha mulher espanhola [mãe dos três filhos], satisfez o pedido e saí em liberdade”.

A travessia do rio obedecia a um plano previamente estudado, para aproveitar a força da corrente e escapar às vigilâncias da guarda. “De Inverno, com a água gelada, custava um bocado” admite. Mas o crime compensava. “Ganhávamos bom dinheiro, comprava por cinco, vendia por doze”.

O gosto pela música revelou-se na altura em que cumpria o serviço militar. Mais tarde, saber tocar acordeão valeu-lhe emprego durante dois anos e meio num circo, viajando por Espanha e Portugal. Nessas andanças, recorda, conheceu a “moça” que, ainda hoje, tem sempre reservado um quarto para ele ficar em El Rocío.  Quantas namoradas teve? “Sei lá, foram tantas...” 

O Guadiana fica a sete quilómetros da casa onde vive. Está sentado numa cadeira de plástico, num casa de portas e janelas abertas. “Desapareceram-me mais de 20 galinhas durante um ano”, queixa-se. A raposa veio ao galinheiro? “Mais provável é que tenha sido uma raposa com duas pernas”. A desconfiança parece ser um sentimento que lhe vem de longe, quando tinha de estar atento até à sua própria sombra. O resto da história, contada pelo antigo “passador” de auxílio à emigração clandestina, bem poderia  encaixar na canção interpretada por Paco Bandeira: “Sou contrabandista de amor de saudade....”

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