O pão nosso

No programa de cinema clássico francês que ocupa o Verão no Nimas, a introdução para muitos ao universo de Marcel Pagnol.

Consta que Orson Welles ficou maluco quando viu A Mulher do Padeiro...
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Ao programa de cinema clássico francês que ocupa os meses de Verão no Nimas chega esta semana o segundo volet de quatro filmes. Três deles são reposições: Aquela Loira de Jacques Becker, Elena e os Homens de Jean Renoir, Fim de Semana no Ascensor de Louis Malle, tudo filmes imperdíveis (sobretudo os dois primeiros, obras-primas absolutas), quer se trate de revisão ou de descoberta. O quarto é, tecnicamente, uma estreia comercial: A Mulher do Padeiro, de Marcel Pagnol, filme de 1938 que a distribuição portuguesa da época ignorou. É, igualmente, imperdível.

E será, por certo, a introdução de muitos ao universo cinematográfico de Marcel Pagnol, um “caso” do cinema francês em grande parte aproximável de outro “caso”, o de Sacha Guitry, que também nas próximas semanas chegará ao Nimas. Muito mais conhecido como dramaturgo e romancista, Pagnol (1895-1974) nunca se interessou pelo cinema até à chegada do sonoro (o que é um ponto em comum com Guitry), na viragem para os anos 30, quando já era uma figura destacada das letras francesas. Perante a possibilidade de o cinema integrar a palavra, o texto, perante a possibilidade de os actores, como no teatro, não serem amputados da sua voz, entusiasmou-se, e de 1931 em diante (quando estreou Marius, primeiro filme da “trilogia de Marselha”) a sua obra comporta possivelmente mais filmes do que romances ou peças (sendo que alguns desses romances ou peças começaram por ser argumentos de filmes).

Essa relação com a palavra e com o texto, com o artifício importado da natureza teatral, foi uma marca no cinema de Pagnol. A outra foi o seu regionalismo: filmou sempre na Provença, Marselha e arredores, conservando sotaques, figuras típicas, actividades tradicionais, aspectos entre o atávico e o pitoresco. A Mulher do Padeiro é um excelente exemplo disto, e um filme magnífico. Curiosamente a matriz literária não é de Pagnol, mas de Jean Giono: Pagnol começou a escrever a história quando percebeu que Giono tinha uma intriga semelhante que lhe pareceu melhor. O cenário é uma aldeia provençal e a situação é simples: a mulher do padeiro local (o grande Raimu), um belo dia, desaparece; à medida que vai percebendo que o desaparecimento foi voluntário e que possivelmente foi trocado por outro homem, o padeiro vai deprimindo até que deixa de fazer pão; todas as forças vivas da aldeia, incluindo a aristocracia e o clero, perante tão insustentável situação, mobilizam esforços no sentido de voltar a juntar a mulher e o marido. E com isto Pagnol constrói um filme que nunca se “fixa” (na comédia ou no drama, na leveza ou na gravidade), nem mesmo quando parece “fixo” (a extraordinária vida daqueles planos longos e estáticos mas cheios de gente, às vezes todos a falar ao mesmo tempo numa cacofonia organizada, a jogar a espontaneidade naturalista com a precisão teatral). Resulta num retrato fortíssimo de comunidade, de relacionamento entre pessoas e lugares, que é quase estranhamente “fordiano”, mas também  – e até pela diversidade de registos, e pelo convívio entre actores muito profissionais e actores muito amadores – faz pensar no Oliveira quase contemporâneo deste filme, o de Aniki- Bóbó. E toda a sequência final, quando de toda aquela nuvem se recortam as figuras do casal finalmente reunido (Raimu e Ginette Leclerc), cheios de ternura, medo, hesitações, é um momento que por si só atesta o génio de cineasta de Marcel Pagnol. Obra-prima, claro. Consta que Orson Welles ficou maluco quando viu A Mulher do Padeiro, e se pôs a gritar o génio de Pagnol e de Raimu. Portanto, se não acreditarem no crítico acreditem, ao menos, no Welles.

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