5 exposições que nos encheram as medidas em Arles

Enquanto o canto das cigarras nos embala e nos faz esquecer a roupa colada ao corpo, percorremos em modo maratona dezenas de exposições nos Encontros de Arles. Estas cinco encheram-nos as medidas

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Ann Ray, Unfallen Angels I, Paris, 2009. Cortesia da artista

Desmontar o “génio”

Na imensidão do Parc des Ateliers, ainda em modo estaleiro de obras à espera da inauguração da torre cintilante de Frank Ghery, e a par de The Train, Le derniére Voyage de Robert F. Kennedy, a exposição que mais nos encheu as medidas foi Lee McQueen - Les Inachevés, uma história de cumplicidade, confiança, amizade e devoção entre Ann Ray e o fulgurante criador de moda Alexander McQueen, que se suicidou em 2010.

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Les Inachevés - Lee McQueen. Ann Ray. Comissário: Sam Stourdzé. Parc des Ateliers - Les Forges (até 23 de Setembro) Ann Ray, Unfallen Angels I, Paris, 2009. Cortesia da artista

Não é preciso dar muitos passos nas salas semi-obscuras do pavilhão Les Forges para se perceber a extraordinária sintonia no trabalho desenvolvido em paralelo por estes dois poéticos fazedores de imagens. Ray — que afirma ter conhecido o designer inglês em 1996, logo após a sua nomeação como director artístico da casa Givenchy e enquanto ela própria estava a dar os primeiros passos na fotografia — não só se tornou na sombra fotográfica de McQueen enquanto ele erguia uma obra cintilante e provocadora na moda, como se tornou uma amiga a quem foi permitido registar momentos mais íntimos ou estudar sessões fora do contexto da moda, onde a experimentação ganhou força e forma.

O quotidiano como espectáculo

Já tínhamos ficado surpreendidos nos Encontros do ano passado com as “aparições” da chinesa Silin Liu entre alguns dos clichés fotográficos do século XX (I’m Everywhere), graças a uma mestria ímpar no uso do Photoshop e a um gozo particular em questionar a imagética ocidental mais comerciável, retocando-a de maneira incluir em cena novos elementos – no caso a figura da sua alter-ego Celine Liu.

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Nuit Blanche. Feng Li. Comissário: Thomas Sauvin. Maison des Lices (até 26 de Agosto) Feng Li, White Night, Chengdu, 2015

Agora é Feng Li que impressiona com a sua fotografia provocadora, desbragada e incisiva, o que nos leva a acreditar que há uma fonte de criatividade na fotografia contemporânea chinesa a ter em conta. As imagens que dão corpo a White Nights, a única série de Feng, foram captadas desde 2005 e mostram “o grande espectáculo que é o quotidiano” de Chengdu, capital da província de Sichuan, com o frenesi do comércio de rua, os parques de lazer e a panóplia de restaurantes. No seu habitat natural, a rua, Feng Li usa a câmara como uma lupa para captar com despudor o que de mais divertido, insólito e irónico se apresenta à sua frente: “Não é preciso ir muito longe; mais, sim, olhar mais de perto. É sempre sobre proximidade.”

Fé e ciência

Não há como passar ao lado de H+, a exposição onde o suíço Matthieu Gafsou nos propõe um estado da arte dos saberes, das tecnologias das ciências, das crenças e das crendices que estão empenhadas em adiar a finitude humana ou em descortinar o segredo da existência eterna. O meticuloso trabalho de investigação de Gafsou começa com as próteses mais arcaicas e acaba nas derivações das correntes pós-humanas, que tentam através de técnicas criogénicas ou de engenharias biológicas e genéticas lutar contra a obsolescência do corpo humano. O difícil é sair H+ e não ficar um pouco assustado.

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H+. Matthieu Gafsou. Maison des Peintres (até 23 de Setembro) Matthieu Gafsou. Cortesia do artista, Galerie C e MAPS

Nenhuma das imagens apresentadas é forjada e documenta “tão-somente” aquilo que existe em domínios como o biohacking a cultura avatar, a condição de homem-máquina e o uso de substâncias nootrópicas, uma classe de compostos que supostamente aumentam o desempenho cognitivo nos humanos. Por outro lado, não deixa de ser paradoxal ver imagens que resultam de tanta sofisticação técnica no meio de um barracão com parades de gesso improvisadas. Isto para não falar da sensação de, lá dentro, nos sentirmos como um frango no churrasco. Mortos de calor.

No mundo dos messias

O mínimo que se pode dizer é que Jonas Bendiksen não descarta nenhum pormenor quando se trata de mostrar aquilo que quer mostrar. Le Dernier Testament, que segue as pisadas de sete homens que acreditam ser a reencarnação do Messias na Terra, está soberbamente documentado não só pelas suas imagens fotográficas, mas também pela extensa documentação vernacular que juntou ao estudo de cada caso, que se expressa tanto na Sibéria (Vissarion) como na África do Sul (Moses Hlongwane), passando pelo Brasil (INRI). Mais detalhes: quem entrasse na Igreja de Santa Ana, em pleno coração de Arles, no dia em que Bendiksen apresentava o seu trabalho poderia pensar que ali estava um pregador a espalhar a sua boa-nova e mostrar os caminhos para a salvação. Vimo-lo mãos no ar em cima de um púlpito a explicar como entrou no mundo de “messias” como Jesus de Kitwe (Zâmbia), David Shayler The Christ (Inglaterra), Jésus Matayoshi (Japão) e Apollo Quiboloy (Filipinas). O tom era professoral e quem assistia acreditou. O catálogo da exposição (The Last Testament, Aperture/Gost, 2017) é uma daqueles livros feitos de maneira inteligente e que dão prazer folhear.

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Le Dernier Testament. Jonas Bendiksen. Église Sainte-Anne (até 26 de Agosto) Jonas Bendiksen, Moses Hlongwane. Cortesia Jonas Bendiksen/Magnum Photos

O casamento perfeito

Se houvesse uma distinção para melhor casamento dos Encontros, este ano o prémio ia para a dupla Jane Evelyn Atwood/Joan Colom, que na secção Dialogues juntam no mesmo espaço dois notáveis trabalhos sobre a prostituição de rua em Paris e em Barcelona. Separados por 20 anos — Atwood captou a prostituição transgénero no Pigalle no final dos anos 70; Colom a prostituição feminina entre 1990 e 2000 —, estas imagens não mostram apenas a performance exibicionista de quem faz do sexo um trabalho, revelando também o quotidiano perdido de bairros do centro da cidade que tanto em Paris como em Barcelona eram já percorridos por turistas à procura de “emoções fortes” e risinhos lascivos. Não tendo sido a primeira, Atwood terá sido a última a retratar o modo de vida “destas criaturas magníficas e complicadas” antes da gentrificação da cidade. Também para Colom o espaço público mais popular e as pessoas que nele gravitam foram sempre a matéria-prima privilegiada do seu trabalho que, para lá da vagabundagem e das ruas a cheirar a mijo, colocam o pulsar humano no coração das cidades, como bem sublinha o comissário Sam Stourdzé.

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Espace Public. Jane Evelyn Atwood & Joan Colom Comissário: Sam Stourdzé. Croisiére (até 23 de Setembro) Joan Colom, Gent del carrer, 2001. Cortesia Foto Colectania Collection
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