Uma janela de oportunidade para a reforma do sistema eleitoral

Os partidos detêm hoje o controlo absoluto sobre quem toma o lugar no Parlamento.

O debate sobre a reforma do sistema eleitoral já parece mais uma mania do que uma vontade séria. Os poderosos aliados do status quo, apesar de periodicamente apresentarem reformas, acabam por não ver razões suficientes para alterar a ordem que lhes trouxe o poder. Apesar disso, vale a pena assinalar mudanças e algum consenso recentes, que sugerem uma janela de oportunidade para a reforma.

Um sistema eleitoral cumpre duas funções: por um lado, assegura a representação política, por outro, garante a governabilidade. Esses dois objetivos são de certa forma contraditórios, pois maximizar a qualidade da representação – na medida em que tal passa por aumentar a proporcionalidade entre votos e mandatos – pode em alguns casos comprometer a formação de governos estáveis e, por conseguinte, a governabilidade. Em Portugal, o PSD tem sempre insistido que qualquer reforma do sistema eleitoral tem de incluir uma redução significativa do número de deputados, precisamente para aumentar a governabilidade.

Ora, o suporte parlamentar do atual Governo sugere que garantir a governabilidade em Portugal já não necessita de uma reforma do sistema eleitoral: existem hoje soluções estáveis à esquerda e à direita, sem que seja necessário garantir maiorias de um só partido. Também o espectro dos governos minoritários, tão comuns ao PS, deixa de ser inevitável. Assim, a comprovada durabilidade da “geringonça” pode ser um inesperado contributo para a exequibilidade da reforma do sistema eleitoral, que se pode agora centrar exclusivamente na questão da qualidade da representação.

Tem sido possível ao longo dos anos reunir um conjunto de indicadores sobre a qualidade da relação entre cidadãos e eleitos, que nos apontam um quadro muito negativo quanto às atitudes dos portugueses em relação à política. Estes sentimentos traduzem-se em níveis muito baixos de participação política e no declínio sustentado da participação eleitoral desde os anos 90.

No entanto, as razões das deficiências da representação política não devem ser procuradas apenas do lado do desinteresse ou apatia dos eleitores. Temos assistido a um aumento de casos graves de disfunção dos partidos – seja na falta de transparência na organização dos processos eleitorais internos, seja na falta de cumprimento ético dos regulamentos da Assembleia da República. Também por isso consideramos que uma reavaliação dos critérios em que a representação política ocorre em Portugal é fundamental e urgente.

Se é certo que o objetivo da governabilidade deixou de ser prioritário, e que a questão da representação política se continua a colocar de forma inequívoca, ainda falta consensualizar a mudança. Que alterações do sistema eleitoral devem ser implementadas com vista ao aumento da qualidade de representação?

Um académico a quem se pergunte como melhorar o sistema eleitoral deverá, em bom rigor, responder da forma mais completa possível: mudanças na fórmula eleitoral, nos círculos eleitorais, no boletim de voto. Ora, uma tal reforma abrangente pode ser muito acertada, mas provavelmente conteria demasiadas variáveis para poder ser aceite pela maioria dos atores políticos em simultâneo.

Seria por isso importante concretizar alguma mudança no sistema eleitoral que os partidos possam aceitar que constitua um primeiro passo na melhoria da qualidade da representação. Estou em crer que, com uma tal reforma, por pequena que seja, a aprendizagem de todos os envolvidos poderia gerar um ambiente favorável a alterações mais profundas no sentido da melhoria da qualidade da representação.

Uma tal alteração poderia passar pela mudança do boletim de voto, permitindo a abertura das listas. Significa isto deixar que o eleitor vote num candidato em vez de na lista partidária. Neste contexto, se um candidato obtivesse um número substancial de votos, poderia subir na lista, contrariando a ordem proposta pelo partido. Tratar-se-ia de reequilibrar o eixo de poder entre cidadãos e partidos no que diz respeito à representação política. Essa abertura das listas deve ser mitigada para, por um lado, não exagerar na competição entre candidatos do mesmo partido, e não obrigar a uma pulverização do financiamento das campanhas partidárias.

Sendo certo que há cautelas a tomar, a situação tal como está é pior. Neste momento, os partidos têm o monopólio da definição das listas, que são fechadas e bloqueadas. Assim, os partidos detêm o controlo absoluto sobre quem toma o lugar no Parlamento. O cidadão escolhe apenas entre partidos. Este total controlo dos partidos já vai sendo raro na União Europeia, onde a larga maioria dos países permite aos cidadãos a expressão de uma preferência.

Em consequência deste monopólio, os deputados dependem totalmente da liderança parlamentar. Se esta dependência aumenta a disciplina de voto, também desincentiva o trabalho de proximidade dos deputados junto dos seus círculos eleitorais, e contribui fortemente para a perceção negativa dos cidadãos quanto à qualidade da representação política.

Num tempo de crescente supranacionalização da política, em que as grandes decisões parecem cada vez mais distantes do cidadão, o papel que os deputados podem desempenhar de ligação entre o sistema político e os eleitores não pode ser desperdiçado desta forma. Torna-se assim ainda mais urgente a reforma do sistema eleitoral que, sendo há décadas discutida em Portugal, tem sido permanentemente adiada. Eis a oportunidade de uma verdadeira reforma estrutural, que a evolução do sistema político, com o nascimento e sucesso da “geringonça”, vem agora permitir.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

“O Institute of Public Policy (IPP) é um think tank académico, independente e apartidário. As opiniões aqui expressas vinculam somente os autores e não refletem necessariamente as posições do IPP, da Universidade de Lisboa ou de qualquer outra instituição”

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