Censuras benévolas?

Em Portugal, há muitas decisões judiciais que não são publicadas e que, naturalmente, o deviam ser.

“Uma vergonha de Justiça. Um juiz conduz um carro sem matrícula. É apanhado nessa situação por uma brigada da GNR que quis fazer o seu trabalho. O juiz fez obstrução e não é condenado. Mas os juízes, enquanto cidadãos, são inimputáveis? QUE POUCA VERGONHA É ESTA?”

ste comentário de um leitor à notícia “Militares da GNR condenados a pagar 10 mil euros a juiz Neto de Moura”, na edição online do Jornal de Notícias, traduz, seguramente, a opinião generalizada dos cidadãos que se depararam com a história de um juiz desembargador que, detectado pela GNR a conduzir um automóvel sem chapas de matrícula, “viu e ignorou a ordem de paragem dos militares da GNR”, e, depois de interceptado, segundo os militares da GNR, manteve uma “atitude provocatória, intimidatória e ofensiva”. Sucede que o juiz em causa conseguiu agora que os quatro militares da GNR fossem condenados a uma multa de 2340 euros por denúncia caluniosa e falsidade de testemunho e ao pagamento de 8000 euros de indemnização ao juiz. Segundo o acórdão que os condenou, o militar da GNR que lavrara o auto mentira ao dizer que o juiz desobedecera deliberada e conscientemente à ordem de parar e se pusera em fuga. Para a Relação de Lisboa, o militar em causa mentira “despudoradamente”, acusando o juiz da prática de um crime de desobediência que bem sabia que não cometera. Quanto à “atitude provocatória, intimidatória e ofensiva” que os militares da GNR apontavam ao juiz, o Tribunal da Relação esclareceu que o juiz se limitara a manifestar o seu natural desagrado com a perseguição automobilística, com sinais sonoros e luminosos ligados, de que fora vítima, dizendo somente “Isto é um festival”, o que naturalmente não reflectia qualquer atitude ofensiva, intimidatória, de provocação ou agressão.

Miguel Sousa Tavares, no seu comentário na SIC, não poupou nas palavras, afirmando que “estamos perante uma justiça de amigos, feita entre amigos”, e que casos destes “acontecem todos os dias” e “os juízes (sempre) tomam como boa a versão policial contra a do cidadão comum”, mas, quando está em causa um colega do julgador, “já acham que a polícia está a mentir”. Também me parece que este espírito crítico e atento em relação aos depoimentos dos militares da GNR não surgiu por acaso.

Pelas notícias publicadas sabemos que a condenação veio do Tribunal da Relação de Lisboa, sucedeu a uma absolvição dos GNR na 1.ª instância e até sabemos os nomes dos juízes desembargadores autores do acórdão: Carlos Espírito Santo e Cid Geraldo. Como é natural, quis ler o acórdão para poder comentar, de forma segura, o seu conteúdo. Não consegui ter acesso ao acórdão! Como acontece com a maior parte das decisões dos nossos tribunais, este acórdão é clandestino. Na verdade, existe um site — dgsi.pt — que, essencialmente, se destina a tornar públicas as decisões judiciais dos nossos tribunais superiores. E aí são publicadas, com maior ou menor atraso, muitas decisões dos nossos tribunais superiores. Mas, lamentavelmente, há muitas mais decisões que não são publicadas e que, naturalmente, o deviam ser.

Até hoje, e apesar de muitos esforços, não consegui descobrir a que critérios obedece tal publicação e não publicação. Será falta de tempo? Falta de funcionários? Desleixo? Desprezo pelos cidadãos?

 Às vezes, dá a sensação que é intencional e que não são publicados acórdãos que poderiam ser desagradáveis ou polémicos, se fossem divulgados — como é o caso deste. Uma espécie de censura.

O que me leva ao segundo assunto desta crónica: um mergulho na censura nos tempos da Real Mesa Censória do Marquês de Pombal.

Não é propriamente um livro para levar para a praia — receio mesmo que se afundasse ao lê-lo —, mas, se tem curiosidade pela nossa história das ideias e dos pensamentos, aconselho a leitura de O Censor Iluminado, um livro de Rui Tavares (Tinta da China, 2018) que, com imensos pormenores e ideias — é uma tese de doutoramento —, se debruça sobre o possível papel “progressista” da censura iluminista que, entre outras coisas, visava afastar do público tudo o que era inútil, ocioso, pueril, pouco proveitoso e mesmo de mau gosto.

O quer me leva ao primeiro assunto desta crónica: será essa a intenção dos nossos tribunais superiores?

Francisco Teixeira da Mota interrompe a sua crónica em Agosto. Regressa como habitualmente na primeira sexta-feira de Setembro

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