Provedora: “Centros de instalação são o no man’s land contemporâneo”

Sem meios para monitorizar, Maria Lúcia Amaral diz que deu conta de quebra de regras em CIT “por acaso” e que estamos “num domínio de grande obscuridade”. Instalações de Lisboa não têm condições para famílias, denuncia relatório.

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A provedora de Justiça lamenta a falta de meios para fiscalizar centros como o do aeroporto de Lisboa Ricardo Mussa/SEF

Quem chega ao Centro de Instalação Temporária (CIT) do Aeroporto de Lisboa tem folhetos de papel em inglês, português e francês. Se não falar nenhuma destas línguas pode ter auxílio através da Internet ou de um intérprete contactado telefonicamente, diz ao PÚBLICO o inspector do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que não pode ser identificado.

Mas isto nem sempre funciona, denuncia o relatório anual do Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), entregue em Junho à Assembleia da República, onde se retratam situações que a provedora classifica de preocupantes. A Provedoria de Justiça, enquanto entidade responsável pelo MNP, tem, desde 2013, um instrumento de monotorização da aplicação da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Degradantes ou Desumanos (CAT) da ONU. Isto significa que periodicamente inspecciona os locais com pessoas detidas ou condicionadas na sua liberdade – das prisões a centros educativos ou a CIT.

Já depois da publicação do relatório, a meio de Julho, foi encontrada pela equipa do MNP no CIT do Porto uma mulher congolesa, com mais de 50 anos, sozinha, “em isolamento há 20 dias”, descreve a provedora. “Não conseguia falar com ninguém, só com a senhora da limpeza. Estava numa circunstância psicológica frágil. Graças à nossa intervenção pôde ser colocada em instalações da Unidade Habitacional de Santo António, e está a ser acompanhada.”

A verdade é que os CIT são locais “híper voláteis”, afirma, onde há gente a entrar e sair frequentemente, os requerentes de asilo não têm facilmente acesso à comunicação com o exterior e, muitas vezes, ficam em isolamento por não falarem a língua nem haver tradutor para mediar a comunicação. “É um universo impenetrável. Nas prisões a família visita regularmente, há advogados. Estas pessoas não têm ninguém, é um domínio de grande obscuridade e é isso que faz com que a preocupação seja grande. Os CIT são o verdadeiro no man’s land contemporâneo”.

Nas suas visitas regulares, os técnicos viram uma família que estava separada para dormir, com crianças a dormir num colchão, directamente no chão da camarata feminina – como a família que o PÚBLICO entrevistou –, sem qualquer tipo de brinquedos ou cadeiras apropriadas para as refeições ou lazer dos bebés. Há relato de várias pessoas que ficam em isolamento por ausência de intérprete, de falta de informação sobre os seus direitos e deveres, denunciam. “Ficámos muito preocupados com isso e com o facto de os CIT não terem uma ala dedicada às famílias”, diz uma das assessoras da Provedoria, algo para o qual o anterior provedor já tinha chamado a atenção.

Em Novembro de 2017, na sequência de um alerta para um surto de varicela no CIT de Lisboa, ficaram 14 pessoas de quarentena, entre elas sete crianças, e detectaram uma sobrelotação do espaço, com 76 pessoas e “inúmeros colchões de espuma espalhados pelo chão”, sendo que para “diversas pessoas apenas havia a possibilidade de se deitarem no chão sobre cobertores”. Acrescentam no documento que nessa ala havia 14 crianças - o que é proibido pelas convenções internacionais.

O que o MNP descreveu no relatório são situações “recorrentes”, que não se resolvem de “uma vez por todas”, sublinha a provedora, mas que correspondem “a fragmentos da realidade que precisa de ser melhor conhecida”. E avisa: “Não tenho informação suficiente para fazer uma declaração sistémica sobre o que falha e apontar o dedo. Os serviços que estão no terreno têm uma missão difícil e constrangimentos logísticos que têm que ser levados em linha de conta.”

O objectivo, explica, não é apontar o dedo mas chamar a atenção para aspectos que podem ser melhorados – o que em alguns casos tem acontecido, afirma. Por exemplo, durante a visita do MNP não havia modo de os requerentes que permaneciam mais tempo lavarem a sua roupa, mas a sugestão foi acatada e desde há dias há um serviço de lavandaria uma vez por semana.

Sem meios

Se seria necessário monitorizar estes espaços, a verdade é que a provedora diz que não tem meios suficientes para aplicar o MNP – só em relação aos CIT o ideal era fazer três visitas por mês, calcula a equipa. “Porque pode acontecer que durante 48 horas estejam uma série de crianças e depois chegamos lá e já não se sabe para onde foram.”

A partir de Setembro, terá uma pessoa a dedicar-se exclusivamente ao MNP, mas para ter uma “intervenção justa, que impeça que as pessoas sofram e seja uma auxiliar da boa administração do Estado”, precisaria de muito mais – o Conselho da Europa fala em pelo menos três.

Maria Lúcia Amaral critica o facto de a resolução de 2013 que lhe atribuiu aquelas funções não ter sido acompanhada por nenhuma medida concreta de apoio logístico, ou seja, de pessoal. “Demos conta destas situações por acaso ou porque o ACNUR nos disse. Isso não pode ser. Se me pergunta por separação das crianças, presença de crianças em tempo ulterior ao regulamentado, em condições sanitárias precárias: acontece mais vezes em Portugal? Responder-lhe-ei: ‘Não sei e precisava de saber.’ Mas para poder saber tenho que ter outros meios.”

A Provedoria depende da Assembleia da República. Questionado, o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Pedro Bacelar Vasconcelos, não disse se estão a planear promover diligências para atribuir mais meios ao MNP (a provedora esteve nesta comissão a relatar os constrangimentos referidos no dia 11 de Julho).

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