A controvérsia sobre a Lei Básica do Estado-Nação de Israel

O contexto interno e internacional é propício a uma “realpolitik” bastante favorável a Benjamin Netanyahu. Este é apenas mais episódio do longo e trágico conflito israelo-palestiniano, que se torna cada vez mais insolúvel

1. A identidade do Estado de Israel sempre foi um assunto sensível e contencioso desde primórdios da sua fundação, no pós-II Guerra Mundial. A criação de uma constituição estava prevista na declaração de independência em 1948. Todavia, até hoje, não existe uma constituição escrita codificada, ou seja, um texto aprovado por uma assembleia constituinte, como é usual na tradição europeia-continental. A lei constitucional do Estado israelita nunca chegou a ser feita dessa forma, pelas divisões que, desde o início, têm existido entre judeus. Enfrentou a oposição dos sectores religiosos, mas também críticas dos judeus seculares. Como na altura da fundação a larga maioria do povo judaico se encontrava fora de Israel, foi entendido não existirem condições políticas para a fazer. Para além disso, existe uma tradição de constituição não escrita e não codificada dos britânicos que também teve influência em Israel. Esse era o modelo preferido de David Ben-Gurion, o principal fundador do Estado israelita (ver Nir Kedar “Ben-Gurion's Opposition to a Written Constitution" in Journal Journal of Modern Jewish Studies, Volume 12, 2013, nº 1). Na prática, Israel tem hoje uma constituição em sentido material — ou seja, leis constitucionais, designadas oficialmente como leis básicas. Existem mais de uma dezena de leis com essa natureza constitucional, que regulam, por exemplo, o funcionamento dos órgãos de soberania, o exército, a economia estadual, Jerusalém como capital de Israel, a dignidade humana e liberdade, o referendo, etc.

2. A 19/7/2018 foi aprovada uma legislação materialmente constitucional no Knesset, o parlamento de Israel — a Lei Básica: Israel - Estado-Nação do Povo Judeu —, com 62 votos a favor e 55 contra, num total de 120 deputados. A primeira versão desta lei surgiu em 2011, por um deputado do Kadima/“Avante” (centro-direita), e foi rejeitada no parlamento. Nesta última versão, agora aprovada, foi apoiada pelo Likud (direita conservadora/nacionalista) e pelo Primeiro-Ministro, Benjamin Netanyahu. A lei é controversa em vários pontos entre os quais se destacam estes (ver “Read the full Jewish Nation-State Law” in Jerusalem Post, 19/07/2018): “1. O Estado de Israel. a) Israel é a pátria histórica do povo judeu na qual o Estado de Israel foi estabelecido. b) O Estado de Israel é o Estado-Nação do povo judeu, no qual este efectiva o seu direito natural, religioso e histórico à autodeterminação” [...]. “3. [A] unificada e completa [cidade de] Jerusalém é a capital de Israel”. “4. A Língua do Estado de Israel. a) O hebraico é a língua do Estado. b) O idioma árabe tem um status especial no Estado; a regulamentação da língua árabe nas instituições do Estado […] será regulada por lei.”

3. Algumas observações sobre o seu teor. De uma maneira geral toda a construção legislativa tem subjacente a lógica de Israel como um Estado judeu e para judeus. Ignora a questão dos árabes-israelitas — na ordem dos 20% da população que vive em território de Israel e tem a sua nacionalidade —, não lhes fazendo qualquer referência histórica e/ou identitária, nem atribuindo / reconhecendo direitos específicos como minoria. (Ver Al Jazeera, “Israel passes controversial ‘Jewish nation-state’ law”, 19/07/2018). Em relação às línguas reconhecidas pelo Estado de Israel — agora só o hebraico, pois o árabe fica apenas com um “estatuto especial” —, a origem legislativa está num acto britânico de 1922, alterado em 1939, durante o mandato da Sociedade das Nações (SdN), que determinava que todos actos oficiais deviam ser publicados em inglês, hebraico e árabe. Na altura da independência, em 1948, esse acto legislativo britânico foi emendado, retirando o carácter de obrigatoriedade à língua inglesa, a qual continua, todavia, a ser largamente usada. Sobre Jerusalém, importa notar que já existe um acto legislativo de 1980, também com o carácter de lei básica, que estabelecia, no seu n.º 1, que “Jerusalém completa e unificada é capital de Israel”. (Ver Knesset, “Basic Law: Jerusalem, Capital of Israel”). Aqui fundamentalmente reiterou-se o já estabelecido nessa anterior lei básica.

4. Agora uma breve análise sobre o contexto político em que esta legislação foi aprovada pelo Knesset. Este ano já ocorreram pelo menos dois acontecimentos desestabilizadores e criadores de fortes tensões entre judeus e palestinianos. O primeiro foi a marcha dos palestinianos — liderada pelo Hamas —, que assinalou os 70 anos da “Nakba”, a catástrofe de 1948, devido à derrota na primeira guerra da fundação de Israel. O outro foi o lançamento da nova embaixada dos EUA em Jerusalém, a 14 de Maio, com o simbolismo do reconhecimento de Jerusalém, e não de Telavive, como capital, pela maior potência mundial. Apesar destas tensões internas, o contexto internacional é favorável ao governo de Benjamin Netanyahu. E não só pelo apoio claro dos EUA, com o actual presidente Donald Trump. Para além disso, há uma boa relação pessoal com Vladimir Putin, o que é palpável pela permissividade da Rússia face às incursões aéreas na Síria contra alvos iranianos. A recente cimeira entre Trump e Putin em Helsínquia terá sido encorajadora para os interesses israelitas. Ao mesmo tempo, devido às tensões e divisões entre sunitas e xiitas, Israel tem, na prática — e fora do olhar da opinião pública —, um apoio dos Estados sunitas do Médio Oriente como a Arábia Saudita e outros. Olham para Israel como um (necessário) contrapeso do Irão.

5. Por último, apesar de as posições públicas nas Nações Unidas, sobretudo no Conselho de Segurança e/ou Assembleia Geral, não darem muito essa ideia, Israel tem também boas relações com a Índia, especialmente em termos militares e económicos. Também com a China, o que é mais surpreendente, existe uma importante parceria económica e em crescendo. Os chineses estão particularmente interessados na tecnologia avançada israelita e estes no mercado chinês. (Ver “Unlikely partners? China and Israel deepening trade ties” in BBC, 19/07/2018). Face a tudo isto, não é de esperar que os protestos dos palestinianos e as críticas da esquerda israelita, das ONG e de outros actores políticos tenham grandes resultados práticos. (Ver “Israel acusado de tornar constitucional discriminação de quem não é judeu” in Público 19/07/2018). O contexto interno e internacional é propício a uma “realpolitik” bastante favorável a Benjamin Netanyahu. Este é apenas mais episódio do longo e trágico conflito israelo-palestiniano, que se torna cada vez mais insolúvel.

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