Na pirâmide de Gulbenkian, entre a maravilha e o espanto

Aqui desce-se às reservas e entra-se na Grécia, na Babilónia, descobre-se um documento no arquivo e abrem-se as gavetas da secretária de um homem poderoso que nunca foi o que quis ser. O realizador Joaquim Sapinho é o comissário da exposição que é hoje inaugurada no Museu Gulbenkian e que faz um retrato intimista deste coleccionador que esteve sempre preocupado com o fim.

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Miguel Manso

São corredores largos, com salas envidraçadas de ambos os lados. Vêem-se máquinas e tubagens, computadores e empilhadoras, guilhotinas e prensas, equipamentos que parecem vir de outro tempo. Se não soubéssemos estar prestes a entrar nas reservas de um museu, facilmente acreditaríamos que se trata de um plateau onde se vai rodar um filme de ficção científica que tem mais de passado que de futuro. Joaquim Sapinho é realizador, mas é na qualidade de comissário de uma das exposições do Museu Gulbenkian que ali está, com o entusiasmo da primeira vez, para entrar na “outra pirâmide de Quéops”: “As reservas deste museu são como o túmulo de um faraó – cheias de tesouros, mas também de objectos pessoais que nos ajudam a compreender como viveu, que mundo era o seu, em que é que acreditava”, diz ao Ípsilon a poucos dias da inauguração de Convidado de Verão: Joaquim Sapinho, a exposição de que é curador e que a partir de hoje e até 24 de Setembro põe em diálogo a colecção de Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955) e a de arte moderna e contemporânea que a fundação que criou começou a reunir depois da sua morte.

Gulbenkian, filantropo de origem arménia nascido no império otomano e homem de negócios que fez fortuna com o petróleo, não está sepultado na Avenida de Berna é certo, mas é lá que, em parte, está guardada a sua vida, defende Sapinho, apontando para os objectos dispostos sobre a mesa – uma bóina preta, estojos, corta-papéis, binóculos, agendas de bolso, charutos – numa das salas das reservas onde estão depositados itens pessoais e cinco mil obras de arte.

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Joaquim Sapinho fotografado junto a um tapete de oração otomano MIGUEL MANSO

“Esta reserva, este museu, é a pirâmide de Gulbenkian”, diz o realizador e produtor de 53 anos que, com a curadoria desta exposição a convite da directora do museu, Penelope Curtis, regressa a um dos espaços da sua infância e mergulha na biografia do coleccionador. “O que quero propor com estes objectos é um olhar sobre Gulbenkian, sobre um homem que viveu permanentemente em trânsito e que vê a sua colecção de arte como uma garantia de eternidade, como um instrumento para uma transcendência profana, laica”, acrescenta, garantindo que o desafio que lança a cada visitante é para que construa a sua própria imagem do fundador, estabelecendo as ligações que quiser entre as peças que lhe pertenceram e as obras que agora as rodeiam, de artistas como Rui Chafes, Pedro Cabrita Reis, Ana Jotta, Rachel Whiteread, Ângela Ferreira e Carlos Bunga. “É o discurso de cada um, o seu olhar poético, que activa estas peças e lhes dá sentido.”

O cinema de Fritz Lang e a BD de Blake & Mortimer e de Tintin, sobretudo Os Charutos do Faraó, são algumas das referências a que Sapinho não consegue escapar quando fala da sua relação com o museu depois da descoberta das reservas e da rede de corredores no subsolo. Cá em cima, a exposição, dividida em 12 pequenos núcleos, começa no átrio com uma escultura do século XVIII que representa Eneias fugindo de Tróia depois da vitória dos gregos. Transporta com ele o pai, Anquises, que, por sua vez, carrega os deuses do lar, como se fossem eles mesmos pequenas esculturas. “Para mim Gulbenkian é como este Eneias e os deuses que Anquises traz representam a colecção de arte que ele deixou em Portugal. Também ele foi forçado a fugir do seu território, a Anatólia, e também ele andou sempre com a sua colecção às costas até chegar aqui, a um museu que sempre quis mas que já não chegou a ver [foi inaugurado em 1969]. Gulbenkian é também um desenraizado, alguém que, apesar do dinheiro, é sempre visto como um underdog, um estrangeiro. Tem uma enorme capacidade de fazer, de se adaptar, mas nunca deixa de sentir que vem de fora.”

Passar do átrio do museu para o do antigo Centro de Arte Moderna implica atravessar parte do jardim, algo que, imaginamos, teria agradado ao fundador, que era um apaixonado pela botânica. Lá chegados, a primeira “peça” que Sapinho nos propõe é uma elegante vitrina pensada por Gulbenkian e desenhada por Edgar Brandt, reputado artista do ferro, que é uma espécie de carta de intenções do curador. O que a partir dali se vai ver, em pequenos núcleos distribuídos pela grande nave expositiva onde está instalado o acervo de escultura do século XX, são na sua maioria peças trazidas das reservas do museu – obras de arte, mas também objectos pessoais do coleccionador – que traçam um retrato de Gulbenkian, que vão à procura do seu mundo e das suas memórias, dos seus desejos e aspirações, dos ambientes e lugares que foi criando.

“Vejo esta exposição como uma experiência quase mediúnica – umas vezes penso nos visitantes na pele do Gulbenkian, outra imagino-o a percorrer as salas, a ver as peças que escolhi. E pergunto-me o que acharia ele deste retrato que fizemos do que foi a vida que o pai quis que ele vivesse, dos sonhos que não cumpriu”, admite o realizador.

A vitrina da entrada, assim como as que se vão encontrar ao longo da exposição, funciona como uma câmara das maravilhas descarada – ao contrário das suas “congéneres” do Renascimento não há nela nada de secreto ou escondido – que convida a entrar no universo – e na biografia – do coleccionador que viveu os seus últimos 13 anos em Portugal.

“A vitrina é uma metáfora para uma certa ideia de mundo que o Gulbenkian tinha, uma ideia que não funcionou, como tantas outras coisas na sua vida”, diz Sapinho, lembrando que o coleccionador quis ser cientista, quis abrir em vida um museu para a sua colecção, quis criar uma “casa ideal” (o n.º 51 da Avenue d’Iéna, a sua segunda morada em Paris). “Acho que podemos dizer que ele acabou por ser um homem infeliz, apesar de viver rodeado de obras de arte que lhe davam um prazer imenso. Há projectos dele, fora dos negócios, que falham. A casa ideal que demora anos a fazer e onde depois não é capaz de viver é um dos exemplos. E ele reconhece esse fracasso ao dizer à mulher qualquer coisa como: ‘Eu prometi-te um palácio, não te prometi a felicidade’.”

Gulbenkian, modo de usar

Durante a preparação desta exposição que na cabeça de Sapinho se chama  CSG – Mode d’emploi (Calouste Sarkis Gulbenkian – Modo de usar), o realizador sentiu que estava a conversar com o coleccionador e que ele, em toda a sua capacidade de antecipação que é própria dos grandes homens de negócios, sobretudo aqueles que estão preocupados com o que deles ficará a seguir à sua morte, tinha previsto essa conversa.

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O realizador-comissário entre a carta de Gulbenkian ao curador-chefe da National Gallery de Washington e um desenho de Fragonard MIGUEL MANSO

No encontro entre os dois – e do coleccionador com os visitantes – foi fundamental também o arquivo, onde Sapinho foi buscar vários documentos, entre eles a carta que Gulbenkian manda ao curador-chefe da National Gallery de Washington, John Walker, em que admite que as obras da sua colecção são para ele como “filhas” e que o seu bem-estar futuro é uma das suas principais preocupações. O documento, com uma cópia em exposição, foi um dos que mais fascinaram Joaquim Sapinho, assim como um memorando de Janeiro de 1956 que tem a lista de todos os objectos que Gulbenkian guardava na secretária do seu quarto na Avenue d’Iéna. “Na carta para o Walker há uma meditação sobre o fim, sobre a morte. O memorando traz outro retrato possível.” Dois revólveres, uma dentadura, um corta-papel em marfim, medalhas em ouro, moedas gregas, uma caixa de cigarros, cartas de vários advogados, um selo assírio, um pequeno espelho Boucheron, um lápis de ouro e outro de prata, uma caixa grande com jóias, um envelope com dinheiro, um relógio com as iniciais C.C.G., um exemplar de Les Chansons de Bilitis, obra poética de Pierre Louÿs, entre muitos outros.

Alguns destes objectos estão agora expostos nas vitrinas. “A ideia é que o visitante encontre num núcleo uma ou outra peça que aponte para o seguinte.” E as peças não podiam ser mais variadas: há fotografias do pai e do avô, passaportes e vistos diplomáticos, um pássaro embalsamado, um tapete de oração otomano, moedas bizantinas, um livro de registo das pinturas compradas e vendidas, caixas de medicamentos em laca japonesa, ornamentos de cabelo de René Lalique, fragmentos de livros de horas do século XV, candelabros Germain, casacas persas, desenhos de Fragonard, estojos Louis Vuitton que manda fazer à medida, panejamentos que pertenceram à rainha Maria Antonieta, cadeiras da sala de jantar do palacete da Avenue d’Iéna e até um candeeiro da biblioteca que ainda está embalado e que é mostrado no caixote de madeira em que foi transportado de Paris para Lisboa.

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Nos núcleos que concebeu para esta exposição, Sapinho combina peças da colecção, como este desenho de Fragonard (canto inferior à dta.), com documentos de arquivo, como a carta (cópia) a John Walker, curador-chefe da National Gallery de Washington MIGUEL MANSO

“A colecção Gulbenkian tem esta grande beleza de resistir aos discursos organizados  e deterministas dos museus”, defende Sapinho. “Há nela um caos que resulta do facto de ter nascido do gosto de uma pessoa, com todas as suas contradições e obsessões.”

Uma vida em viagem

Entrar na exposição que Sapinho propõe torna-se mais fácil se conhecermos um pouco melhor o percurso de Gulbenkian, um homem que nasce em 1869 numa família de origem arménia já com hábitos filantrópicos (patrocinam a construção de escolas, igrejas e hospitais).

Por volta de 1850, o pai e o tio de Gulbenkian tinham-se mudado para Constantinopla (actual Istambul), capital de vários impérios. A sua empresa familiar de importação e exportação negociava em tapetes e noutros produtos. Com um projecto bem definido para o filho – fazer dele um homem de negócios, mas também um gentleman à boa maneira inglesa -, o pai de Gulbenkian manda-o para Marselha aos 14 anos, para aperfeiçoar o seu francês, e depois para o King’s College, em Londres, uma universidade de grande prestígio.

Gulbenkian, que tinha uma curiosidade científica natural e que se destacou no estudo da Física, queria seguir uma carreira na investigação, mas o pai acaba por o enviar para os campos de petrolíferos de Baku, Azerbaijão, para se especializar. O jovem Gulbenkian ficou fascinado por aquele mundo e escreve sobre ele um livro e vários artigos para a revista Deux Mondes que despertam o interesse do governo otomano, levando-o a encomendar-lhe um relatório sobre os recursos petrolíferos do sultão no território a que hoje chamamos Iraque.

Os negócios corriam-lhe bem quando em 1896 – casado há já quatro anos com Nevarte Essayan, oriunda de uma família riquíssima e de grande influência na corte otomana, com quem teria dois filhos, Nubar e Rita – se vê forçado a deixar Constantinopla para escapar aos ataques contra a comunidade arménia e foge com a família para Alexandria, no Egipto, país onde vive um ano, partindo depois para Inglaterra.

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Um dos candeeiros da biblioteca do palacete da Avenue d’Iéna é mostrado ainda embalado, tal e qual como chegou de Paris MIGUEL MANSO

Londres e a sua Bolsa eram bem mais fascinantes para este negociador exímio, que se transformou num profundo conhecedor do mundo financeiro e que sempre rejeitou o rótulo de “homem do petróleo”, apesar de cedo ter assumido um papel preponderante no que toca às reservas petrolíferas do futuro Iraque, servindo de mediador entre os interesses internacionais, encabeçados pelas grandes potências europeias, e o Governo otomano, cujo império cairia em definitivo no final da Primeira Guerra Mundial.

Gulbenkian contribuíra já para a fundação do Banco Nacional da Turquia que, por sua vez, daria origem à Turkish Petroleum Company, empresa criada com o objectivo de explorar os riquíssimos poços iraquianos e cujo capital estava dividido entre a Royal Dutch-Shell (25%), o referido banco (35%), o Deutsche Bank (25%) e o próprio Calouste Gulbenkian (15%), lê-se no site da fundação. Com o deflagrar do primeiro conflito mundial, e para fazer face à disputa internacional pelas reservas iraquianas, Gulbenkian vê-se forçado a reduzir a sua quota para 5%, passando a partir daí a ser conhecido no meio dos negócio do petróleo como o “Senhor Cinco por Cento”, um dos homens mais ricos do mundo.

Com o dinheiro que resultava dos negócios do petróleo, Gulbenkian investia e fazia mais dinheiro. Foi com ele que comprou milhares de obras de arte (hoje 1100 estão em exposição no seu museu) e se dedicou ao apoio de várias causas, tornando-se um filantropo e honrando, assim, a tradição familiar.

“Não sabemos nada sobre as obras de arte que tinha com ele em Constantinopla. O que sabemos é que não consegue ser de um lado só – no seu gosto, muito ocidental, há também ecos do Oriente, há uma coisa que paira que não é daqui, não é europeia”, diz João Carvalho Dias, conservador da Gulbenkian que tem dedicado boa parte do seu tempo ao estudo do arquivo do coleccionador.

A sua Constantinopla, capital dos romanos, dos gregos e, depois, dos turcos otomanos, lugar que deixou a custo, era uma cidade de cruzamentos, de pessoas em trânsito. Nela se misturavam religiões e culturas, nela consolidou Gulbenkian o seu apreço pela arte, “pelos objectos bonitos que lhe davam prazer”, acrescenta.

Na colecção que acabou por reunir, muito ecléctica e orientada pelo seu gosto pessoal, com peças que vão da Antiguidade até ao começo do século XX – estão representados o Egipto e a Grécia antigos, a Arménia, a Babilónia, a Pérsia ou o Japão –, há muita pintura europeia de grande qualidade, de artistas como Rogier van der Weyden, Peter Paul Rubens, Antoon van Dyck, Frans Hals, Rembrandt, Francesco Guardi, Thomas Gainsborough, Jean-Honoré Fragonard, Jean-Baptiste Camille Corot, Pierre-Auguste Renoir, François Boucher, Édouard Manet, Edgar Degas ou Claude Monet.

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Na exposição com curadoria de Joaquim Sapinho podem ver-se obras da colecção, como este livro iluminado, e objectos pessoais, como o relógio de ouro desenhado por René Lalique que o coleccionador usava quando morreu MIGUEL MANSO
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MIGUEL MANSO

“Só tinha o que gostava, mas vivia obcecado com a proveniência das obras de arte, que comprava sobretudo em leilões em Londres e Paris, nas melhores casas”, diz Sapinho.  A sua Diana (1780), do célebre escultor Jean-Antoine Houdon, obra que estava entre as suas preferidas, pertenceu a Catarina da Rússia e foi comprada ao Museu Hermitage em 1930. O Eneias (c. 1715) atribuído a Domenico Parodi que tanto fascina o comissário, foi adquirido a um importante marchand londrino em 1918, e fez parte da colecção do marquês da Foz.

Gulbenkian viveu – e comprou – entre as duas grandes guerras, período em que se assiste ao desmembrar de importantes colecções. Tinha, por isso, obras de grande qualidade à sua disposição, explica Carvalho Dias, garantindo que era muito criterioso na hora de tomar decisões. Rodeava-se de conhecedores e, por vezes, levava muito tempo até concretizar uma aquisição. “Negociava sempre e, nos leilões, nunca aparecia porque acreditava, e bem, que a sua presença poderia inflacionar logo os preços. Enviava o seu representante, tendo a preocupação de escolher o menos óbvio, e dava-lhe um tecto preciso que não podia de forma nenhuma ultrapassar. Às vezes chegava a mandar dois representantes ao mesmo leilão que licitavam sem que nenhum deles soubesse que havia na sala outro que estava a comprar para o mesmo coleccionador.”

Mesmo assistindo ao desaparecimento de colecções de grande tradição – mesmo participando no seu desmembramento enquanto comprador –, Gulbenkian acredita que a sua vai permanecer incólume, sublinha, por sua vez, o comissário. “Ele faz tudo para impedir que aconteça à sua o que viu acontecer às outras. E encontra no Azeredo Perdigão [seu advogado em Portugal e o primeiro presidente da fundação] o parceiro ideal para criar o museu com que sonhou, o museu e a fundação que garantiram que seis mil obras de arte e os seus objectos pessoais, os seus livros, os seus arquivos não se dispersavam”, defende Joaquim Sapinho.

Da colecção ao museu

Gulbenkian começa a pensar que a sua colecção devia estar exposta num museu ainda na década de 1910, diz o curador João Carvalho Dias. O projecto torna-se desde logo evidente quando inventaria as obras que já possui ao trocar a sua primeira casa parisiense – o grande apartamento de Quai d’Orsay – pelo palácio da Avenue d’Iéna, cujas obras começam em 1923 (terminariam dez anos mais tarde, embora em 1927 a família já lá morasse).

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Vista do terraço da casa da Avenue d’Iéna com o Arco do Triunfo ao fundo DR
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Sala de jantar com as pratas do czar DR

“Ele não quer uma casa-museu, embora o n.º51 da Avenue d’Iéna se pareça com isso”, diz, lembrando que dois terços da casa seriam de tal forma desconfortáveis devido à profusão de obras de arte e de peças de mobiliário que era preciso tratar com todo o cuidado que se tornavam praticamente inabitáveis, apesar de todas as inovações tecnológicas ao dispor (só a maquinaria que sustentava o ar-condicionado ocupava “duas ou três salas na cave” e exigia um engenheiro no staff permanente da mansão, que chegou a contar com 25 empregados, entre eles um chef turco e outro grego).

Mikhael Essayan, neto do coleccionador que chegou a viver neste palácio parisiense, lembra num vídeo disponível no site da fundação, que aquela era uma casa onde quase não se podia brincar, sob pena de danificar uma pintura ou uma tapeçaria insubstituíveis, mas onde havia um engenheiro para arranjar os seus comboios eléctricos quando deixavam de funcionar. A casa era “governada” pela avó, Nevarte, mas era o avô, que não gostava da presença de estranhos, quem tinha de aprovar as listas de convidados de toda a família.

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Sala de estar com mobiliário e pano de parede Maria Antonieta DR
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Sala de estar com vitrines Mantelet DR

Gulbenkian fazia por “partilhar” as suas obras de arte com o mundo – fez doações e acedeu a que parte fosse exposta, em 1936, no Museu Britânico (antiguidades egípcias) e na National Gallery de Londres (pintura), e, em 1948 e 50, na National Gallery de Washington –, mas não via com bons olhos que entrassem no espaço que planeara ao pormenor.

“Tudo leva a crer que Gulbenkian não dormiu na Avenue d’Iéna muitas noites, mas não sabemos ao certo. O que é muito claro é que ele prefere o conforto do [Hotel] Ritz. Ele leva anos à procura da banheira ideal para o palácio, porque quer uma com a mesma profundidade da do hotel”, lembra Carvalho Dias. “A Avenue d’Iéna é uma casa-cenário, não é para morar, embora a família lá morasse. Gulbenkian usa-a para trabalhar, não gosta de se expor. Não há nela marcas da sua intimidade, como, aliás, também não parece haver no Ritz.” Para Sapinho, o hotel prolonga uma ideia de tenda, a sua memória de nomadismo: “Gulbenkian é, a partir do momento que é obrigado a entrar no barco em Constantinopla, um nómada, um exilado. Tem muitos passaportes, mas não tem país, não tem casa.”

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Quarto de Calouste Sarkis Gulbenkian DR

Durante a Segunda Guerra, com a França ocupada pelos nazis e a sua consequente mudança, enquanto membro do corpo diplomático persa, de Paris para Vichy, acompanhando o Governo colaboracionista, Gulbenkian foi considerado “inimigo” pelos britânicos. Começa, então, a procurar um país onde estabelecer o museu e a fundação que pretendia deixar em testamento e que antes planeara sediar em Londres. Consideradas várias hipóteses, chega a Portugal em 1942, onde viria a morrer, a 20 de Julho de 1955, com 86 anos.

A França voltaria pela primeira vez só em 1949, e por lá passava boa parte do Verão, quase sempre em Les Enclos, uma propriedade de 34 hectares onde acabou por criar um parque com grandes árvores e alamedas largas feitas para passear e pensar. “Ele era um grande conhecedor de botânica, adorava estar no meio dos animais, sobretudo pássaros, adorava a natureza”, diz o realizador-comissário, lembrando que o coleccionador chegou a escrever sobre o sonho de criar um jardim à sua maneira, um espaço que fosse físico, mas tivesse também um lado espiritual.

Les Enclos, doado pela fundação à cidade de Deauville nos anos 1970, era quase um bosque, embora tivesse alguns canteiros com flores. Lembra o curador João Carvalho Dias que o coleccionador arménio fazia questão de lá ter bois, galinhas e árvores de fruto e que chegava a discutir por carta o que ali ia plantar. “Gulbenkian era um homem que comprava ao mesmo tempo Rembrandts, bolbos e acções.” E sobre tudo isto dita cartas ao ar-livre à sua secretária, sentado num banquinho desdobrável em pleno Parque Eduardo VII, zona verde que não ficava longe do hotel que foi a sua casa nos 13 anos em que viveu em Lisboa – o Aviz, o mais luxuoso da cidade.

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MIGUEL MANSO

Ocupará durante esses anos uma das suites deste hotel na Avenida Fontes Pereira de Melo, demolido em 1962, por onde passaram espiões e estrelas do cinema e da música como Ava Gardner, Maria Callas, Marcello Mastroiani e Frank Sinatra. “Vive no Aviz até ao fim. É lá que recebe os muitos convidados estrangeiros que o visitam. O conforto e a impessoalidade dos hotéis agradam-lhe. Não procura casa em Lisboa. Quando chega a Portugal, já tem mais de 70 anos e talvez já se sinta demasiado velho para recomeçar como na Avenue d’Iéna.”

No Aviz, diz Carvalho Dias, podia fazer a sua jardinagem – deixavam-no aparar as sebes ou plantar flores – e ter no quarto os seus seis ou sete gatos. A cozinha era óptima, assim como a selecção de vinhos. Em Lisboa encontrou a paz que procurara num mundo em guerra, mas continuou a ser perseguido pela ideia de finitude que sempre o acompanhou, contrapõe Joaquim Sapinho.

Para o comissário desta exposição, o ideal é que o visitante saia dela com a sensação de que desceu às reservas e de que entrou no arquivo para se encontrar com Gulbenkian, ficando com a certeza de que não há peça alguma do seu universo que não tenha sonho, fantasia. “Gulbenkian vive o material e o espiritual de forma extremada, mas vive de acordo com um plano que não é o seu, mas o do pai. É um homem que, até ao fim, não consegue mudar, mas que também não deixa de procurar a beleza e o prazer que ela lhe traz.”

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