Coltrane sem fim

Both Directions at Once é um acontecimento. Documentando uma sessão de estúdio de John Coltrane e o seu quarteto clássico em 1963, traz a lume música nova de um dos maiores músicos da história do jazz — e mais além. “Álbum perdido”, convida à redescoberta e discussão de uma obra fundamental.

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Bill Wagg/Redferns

Uma semana após a entrada de Kamasi Washington para o top 20 norte-americano, um “novo álbum” de John Coltrane havia de seguir-lhe as pisadas, lançando nalguns meios um debate mascarado de euforia em torno de uma possível ascensão do jazz às grandes preferências populares. Como se o jazz que alimentou tantos dos samples dos discos históricos do hip-hop recebesse agora, passados 40 anos, o pagamento desse contributo para uma cultura musical que galgou a condição de marginal para se instalar no centro da cultura popular. Kamasi, filho distante de Coltrane, navegando como o saxofone por entre r&b e hip-hop, abrindo o caminho para uma correcção histórica.

Both Directions at Once, um daqueles álbuns perdidos com que a indústria gosta de agitar o mercado e engrossar a mitologia da música, resulta de uma sessão de gravação em 1963 durante a qual Coltrane capitaneou o seu quarteto clássico – em que se incluíam McCoy Tyner, Elvin Jones e Jimmy Garrison – no estúdio de Rudy Van Gelder. Na véspera de voltarem ao local do crime para registarem o disco de parceria com o cantor Johnny Hartman e com o final da sessão ditado pela actuação nessa mesma noite no Birdland, esta que é uma das formações mais relevantes e revolucionárias da história do jazz passou para fita sete temas que poderiam muito bem ter conhecido a luz enquanto álbum oficial da discografia de Coltrane.

Só agora, no entanto, passados 55 anos sobre essa data, a Impulse! edita essa sessão que ficara a pairar no tempo. Com um perfil muito menos bombástico e excêntrico do que Miles Davis e sem a aura trágica de Chet Baker, Coltrane nunca atraiu estúdios de cinema nem serviu de íman a histórias escabrosas que pudessem mitificá-lo para lá da música. Em vez disso, crucial que foi na experimentação que o levou a saltar de intérprete de melodias como My favorite things para o escavador espiritual de álbuns como A Love Supreme ou Ascension, Coltrane foi sempre um músicos dos músicos.

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Chuck Stewart Photography

Para Stuart Broomer, crítico canadiano e autor do livro Time and Anthony Braxton e co-autor de Partidas/Chegadas: Novos Horizontes no Jazz, os pouco habituais números de vendas de Both Directions at Once “sublinham a necessidade de figuras criativas icónicas no jazz numa altura em que o ‘negócio’ se foca num easy listening ‘sofisticado’, enquanto as energias criativas da música improvisada – em parte o legado de John Coltrane – se encontra fora do mercado”. E Broomer realça as gravações com Hartman e Duke Ellington (1962) como exemplo do músico mais mainstream que a Impulse! queria editar, enquanto Both Directions “reflecte um Coltrane que a própria editora estaria pouco interessada em tentar vender”.

O difícil nestes casos pode ser escutar com os ouvidos impolutos, alheados de todo o circo montado à volta de lançamentos desta dimensão – e cujo sucesso de vendas, acredita-se, terá até surpreendido a própria Impulse! Shabaka Hutchings, saxofonista essencial numa nova cena do jazz inglês e ligado aos projectos Sons of Kemet ou The Comet Is Coming, diz ao Ípsilon que, apesar de sentir num primeiro contacto que este será “um grande álbum de Coltrane”, quer deixar o disco para audições futuras. “É o tipo de disco em que não quero entrar no hype e dizer que muda vidas só porque toda a gente o está a dizer – mesmo que me pareça que tem muito para oferecer.”

Se Hutchings afina pela opinião daqueles que identificam em Both Directions at Once a pista de uma fase de transição, em que Coltrane levanta o véu sobre as evasões espirituais e quase libertárias que se seguirão, o saxofonista português Ricardo Toscano, assumido devedor do percuso de Coltrane, defende um corte com essa corrente. “Não sinto que seja tão revelador quanto muita malta diz”, contrapõe. “Claro que soa muito bem, mas acho que eles estão mesmo a experimentar ideias, não me parece que haja uma ideia de produto final.”

Rui Eduardo Paes (REP), crítico e editor da revista online Jazz.pt, reforça essa desconfiança ao defender que este é “um grande disco, mesmo sabendo que, muito provavelmente, estas gravações não se destinavam a ser reunidas num mesmo álbum”. As suas suspeitas têm por fundamento as várias sessões diferentes a que Coltrane recorria neste período para compor alguns dos seus álbuns, o que “torna mais compreensível o facto de o próprio John Coltrane, o seu produtor Rudy Van Gelder e a editora se terem esquecido das mesmas”.

Encaixado nesta semana em que se encontra entre o disco com Hartman e o desenvolvimento do som expansionista do quarteto no palco do Birldand, o título Both Directions at Once, analisa REP, parece colocar esta música num limbo entre passado e futuro, “uma espécie de transição entre fases”, mesmo que a expressão seja, afinal, uma citação de Coltrane sobre como a improvisação se assemelha a saltar para um comboio em andamento, com a noção de que há um antes e um depois. Para Broomer, alias, não são duas direcções em simultâneo que estão presente no quarteto, mas muitas outras, em resultado de “a partir do final dos anos 50 o jazz se encontrar num período de desenvolvimento criativo dos seus recursos e do significado social, virando-se para diferentes formas de blues, gospel, protesto social e experimentação”.

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No entanto, o álbum vai buscar o nome à imagem clarividente do papel da improvisação, uma qualidade de Coltrane que o saxofonista Rodrigo Amado destaca na sua ligação à música do saxofonista: o “arco narrativo” esboçado em cada solo. Incapaz de “imaginar um som de tenor mais perfeito do que este”, Amado destaca no músico um rigor e uma consistência raros que fazem com que possa soar menos visceral do que, por exemplo, Pharoah Sanders – e comparando os registos de ambos em Ascension – mas em que a força da sua improvisação é construída a partir dessa estrutura narrativa a que se agarra e desbasta sem perder o fio à meada.

Ainda assim, acredita Shabaka Hutchings, este é um disco nascido de um momento de “encruzilhada”. “Há uma noção forte de onde estes músicos vêm e este é mesmo o período em que Coltrane começa a olhar para o futuro.” Ou seja, um dos méritos de Both Directions at Once será o de uma fotografia: congelar um momento de ebulição, de uma procura que, nos anos imediatamente seguintes, há-de germinar em colossos musicais como Crescent e A Love Supreme. Amado defende a documentação em disco estes processos. E dá como exemplo as gravações completas da última digressão do primeiro quinteto de Miles Davis, de que Coltrane fez parte. Se há quem advogue que a crescente incompatibilidade entre os dois se tornou de tal forma gritante que a música se tornou bicéfala, perdendo o seu centro, Rodrigo confessa-se fascinado por “sentir dois dos maiores gigantes do jazz em palco e perceber aquela força incontrolável que o Coltrane tinha para experimentar e ir à procura de coisas novas, porque já não lhe chegava a mestria que tinha atingido com aquele quinteto”. Daí que se perceba, garante, o quanto naqueles concertos Coltrane faz por irritar Miles Davis, ao criar constante pontos de tensão.

Não haverá em Both Directions at Once um carácter revolucionário. A sua força maior será o facto de proporcionar um reencontro com a música expansionista de John Coltrane através de gravações cuja existência era desconhecida. Tanto Ingrid Laubrock como Ricardo Toscano dizem que, após um par de escutas, encontram nesta edição uma revelação mais contida do que em outros casos recentes. “Claro que é entusiasmante ouvir uma nova gravação do Coltrane vir a público, mas não me arrasou como quando desenterraram One Down, One Up [2005] pela primeira vez”, diz a saxofonista, por estes dias em digressão ibérica do álbum de Sara Serpa Close Up. Entre ouvir e não ouvir Both Directions, Toscano prefere claramente a primeira opção, mas não lhe encontra o mesmo efeito “revelador” de Offerings – Live at Temple University, gravação de Novembro de 1966 (Coltrane morreu em Julho de 67), à frente de um quinteto que inclui Alice Coltrane, Pharoah Sanders, Rashied Ali e Sonny Johnson.

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Crucial que foi na experimentação que o levou a saltar de intérprete de melodias como My favorite things para o escavador espiritual de álbuns como A Love Supreme ou Ascension , foi sempre um músicos dos músicos Gai Terrell/Redferns

Editado em 2014, Offerings documenta “aquele período final em que ele estava já muito doente, cheio de dores e em sofrimento, e a forma como o Coltrane está a tocar nesse momento é mesmo especial”, defende Toscano. Rodrigo Amado concorda que se no lugar de Both Directions at Once estivesse uma gravação do período final do músico a relevância em discussão seria seguramente diferente. Porque Coltrane dá um salto evolutivo inimaginável a partir de 1963, empurrando a sua música para limites cada vez mais pessoais e criadores de um novo padrão daquilo que o jazz podia comportar.

Tyshawn Sorey, baterista, compositor e um dos mais vitais novos nomes do jazz norte-americano, recorda ao Ípsilon o quanto muita gente com quem se cruzou no liceu ficou “chocada com a fase final do Coltrane, por não terem conhecimento completo da história daquilo que ele fez e contribuiu para esta nova forma de pensar a música”. REP lembra-se do “murro no estômago” quando na sua infância, em Moçambique, o pai pôs a tocar Ascension. “Era música caótica, desmesurada, mas fazia um estranho sentido. Não sabíamos miuto bem o que pensar daquilo e fomos repetindo audições.”

Saltar de Blue Train para Ascension pode ser um passo em falso, desamparado. Mas é a consequência natural para alguém que “permitiu que os músicos pudessem superar-se e arrasar os seus próprios clichés”, diz Sorey. “Foi o Coltrane quem estableceu um modelo de encontrar uma nova forma em tudo e elevou a fasquia. Foi uma pessoa que transcendeu a forma como fazemos e escutamos música. Com o quarteto, foi o principal responsável por criar uma dinâmica a que todos devíamos aspirar e que passa por ouvir profundamente o que os outros estão a tocar.”

Essa herança aspiracional é também uma das marcas mais fortes da obra de Trane no entendimento de Rodrigo Amado. “Como é possível o mesmo músico ter chegado, em campos quase opostos – na fase inicial, com o Miles Davis e em discos como Blue Train ou My Favorite Things, e na fase tardia dentro de um jazz totalmente livre e de vanguarda, em Meditations ou Interstellar Space – a um nível máximo?  É importante dar a ver a todos os músicos que hoje estudam be bop e hard bop  ou que trabalham na improvisação livre que se pode atravessar para o outro lado e experimentar, nada é imutável.”

Tocar pela vida

A riqueza de ensinamentos a retirar da obra e da postura de Coltrane é tão ampla que se torna evidente o lastro deixado na música que se lhe seguiu. DJ Johnny, fundador do colectivo Cooltrain Crew e cruzador de jazz e tantas outras linguagens nos seus DJ sets, afirma que mesmo quando não inclui temas de Trane nos seus alinhamento o seu espírito está sempre presente – e exemplifica com as suas escolhas do reportório de Kamasi Washington, destacando também a abertura do saxofonista à inclusão da música indiana na sua cartografia pessoal “levando o pensamento do jazz, que já incluía a música africana, para um outro patamar”.

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Bill Wagg/Redferns

As técnicas de improvisação não-ocidental foram fundamentais para Tyshawn Sorey enquanto farol não apenas musical mas também para lhe despertar a curiosidade pelo budismo ou pelos contextos culturais na origem desses diferentes sistemas. O baterista gosta de escutar a discografia de Coltrane acompanhando a sua evolução e recorda-se do ritual que seguiu na primeira audição de Offerings, quando desligou todas as luzes na sala e se deixou ligar àquela “fonte de energia” ao longo de duas horas – algo semelhante à sacralização da escuta que DJ Johnny pretende levar a cabo com Both Directions at Once. O que Sorey descobriu nesse processo foi a “noção de que ele não está a tocar temas individuais, mas sim uma longa peça de música”.

Shabaka Hutchings regressa com frequência a Coltrane por diferentes razões – “para escutar aquilo que tecnicamente se pode fazer com o saxofone, por motivos emocionais de perceber como alguém se pode superar e transcender o instrumento ou períodos em que quis observar a sua progressão ao longo de seis ou sete anos” –, enquanto Ingrid Laubrock admite ter obcecado com vários álbuns em diferentes períodos da sua vida, regressando invariavelmente a Crescent. “É um ábum com sentido de exploração e um profundo entendimento dos músicos daquilo que todos os outros estão a tocar.” O mergulho imersivo que fez em Crescent e noutros álbuns, transcrevendo e memorizando solos de Coltrane, levaria a saxofonista a uma medida de emergência ao obrigar-se a escutar outros músicos para aplacar a sua dependência de Coltrane – alguém que, na verdade, “acaba por ter uma inspiração mais correcta como licença para explorarmos o que somos realmente ‘nós’ no meio de tudo o resto”.

Poucas formações podem reclamar o mesmo alcance artístico do que o quarteto de John Coltrane. Tyshawn Sorey acredita que se o saxofonista não tivesse juntado estes quatro músicos “talvez nunca tivéssemos escutado música assim”. Rodrigo Amado assina por baixo e acrescenta que “a empatia que existia entre o Elvin Jones e o Jimmy Garrison forma uma secção rítmica inultrapassável” e chama a atenção para “o trabalho que McCoy Tyner fez no quarteto e que o coloca na história do jazz, algo que nem de perto atingiu com as suas próprias formações”. Talvez porque havia, sob a liderança de Coltrane, um incomparável patamar espiritual, talvez porque, como propõe Ricardo Toscano, “a sensação é que de estão sempre a tocar pela vida, como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, como se estivessem a salvar o mundo – e, de certa forma, estavam”.

O certo é que Both Directions at Once coloca de novo o nome e a música de John Coltrane no centro da discussão musical. Amado acredita que estamos ainda “em processo de descoberta e avaliação” da sua música. E talvez nunca deixemos de estar. Porque aquilo que Coltrane nos deixou – com mais ou menos acrescentos à sua discografia que ainda possam vir a existir – estará sempre na fronteira do insondável. Tão inspirador quanto inatingível. E isso não pode ter fim.

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