António Barreto sobre a reforma agrária: “1975 é o meu grande desapontamento histórico”

“A minha causa no Alentejo era a defesa da liberdade e da democracia no país”, garante António Barreto sobre as razões que o levaram a enfrentar o modelo colectivista do PCP na reforma agrária. Defensor, à época, da distribuição de terras, assume que já então teve dúvidas sobre se havia “condições sociais e culturais” para o fazer.

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Hoje reconhece que já na época sentiu dúvidas sobre se ainda era possível a distribuição de terras
Mário Soares, António Arnault
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António Barreto foi ministro da Agricultuca com o primeiro-ministro, Mário Soares

É uma referência na política e na sociologia em Portugal, um ancião de 75 anos que até já foi olhado como possível candidato a Presidente da República — hipótese que matou no ovo, antes que fermentasse —, mas ainda hoje, mais de quatro décadas passadas, continua a ter o seu nome associado à alteração legislativa que preparou, a “Lei Barreto”, com a qual pretendia reorientar a reforma agrária introduzida em Portugal pelo PCP, logo após o 25 de Abril.

“Dentro do meu percurso de juventude de esquerda, a reforma agrária era uma questão prioritária”, confessa ao PÚBLICO António Barreto, que entre 1963 e 1970 foi militante do PCP. “Para mim, reforma agrária era a expropriação pelo Estado das terras e a sua distribuição por quem as trabalha, os camponeses, os seareiros”, explica. E reconhece: “1975 é o meu grande desapontamento histórico.”

O PCP “tinha tomado conta de 15% do país”, lembra Barreto, sublinhando que “o que houve em Portugal foi tirar as terras aos proprietários e dá-las aos comunistas, que, em vez de distribuírem, ainda concentraram mais a propriedade constituindo unidades colectivas de produção (UCP) que juntavam várias herdades, num modelo do tipo dos kolkhozes soviéticos”.

Afirma mesmo que o modelo seguido pelo PCP para a ocupação das terras “não respeitou a lei” de 1974. E aponta o modelo directamente seguido. “Esteve cá, a seguir ao 25 de Abril, um ex-ministro da Agricultura de Salvador Allende, no Chile, Jacques Chounchol, que deixou um documento em que dizia como se fazia a reforma agrária. Era o modelo que o PCP seguiu. E que transpôs para cinco documentos, os quais eram o guia para a reforma agrária”, frisa.

Pela liberdade e democracia

As suas convicções profundas sobre reforma agrária colidiam assim com a realidade do que se passou em Portugal. Por isso, impôs a Mário Soares condições para aceitar ser ministro da Agricultura (ver páginas seguintes). Mas garante: “O que me moveu na minha acção como ministro foi estar a lutar pela democracia, a minha causa no Alentejo era a defesa da liberdade e da democracia no país.” Daí que, perante os que manifestavam dúvidas, dizendo que “o Alentejo era comunista, eles tinham 45% dos votos na Zona de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA) e 55% em Beja e Évora”, Barreto respondia: “O que me interessa é o meu país e a liberdade e a democracia em Portugal.”

Logo quando tentou alterar o caminho da reforma agrária, assume hoje, teve dúvidas sobre se conseguiria atingir os seus objectivos. “Pensei muitas vezes: ‘Estou a devolver terras, quando a minha ideia há dois anos era fazer uma reforma agrária’”, afirma. E admite: “Não nego que já na altura me perguntava: ‘Será que há gente para fazer a distribuição de terras ou já é tarde?’” E sublinha: “Então já duvidava que houvesse pequenos agricultores, rendeiros e seareiros com fome de terra, suspeitei que não havia condições sociais e culturais para voltar atrás. Perguntei-me se ainda era possível, se o ter havido a revolução não era impeditivo de se distribuírem terras.”

O interesse pela agricultura não lhe advinha só do ideário político de esquerda da época, mas também da sua experiência profissional. Licenciado em Economia Social, pela Universidade de Genebra, em 1967, ficou como assistente naquela instituição, onde em 1984 se doutorou em Sociologia com uma tese precisamente sobre “Reforma agrária em Portugal”, de que resultou a obra Anatomia de Uma Revolução — A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976.

Em simultâneo, entre 1968 e 1974, é assistente do director-geral do Instituto de Pesquisas das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social (UNRISD). “Nesses anos trabalhei primeiro num projecto sobre cooperativas de crédito e desenvolvimento agrário na América Latina e, depois, num estudo sobre revolução verde, ou seja, a introdução de novas variedades híbridas — não era transgénicos — para potenciar a produção de cereais, um projecto que ajudou a combater a fome na Índia e na China. A minha função era viajar pela América Latina e África e garantir que os métodos de comparação eram idênticos.”

Com essa “experiência de gabinete sobre agricultura de seis a sete anos”, regressa a Portugal após o 25 de Abril, convencido de que “tinha de trabalhar na agricultura e na reforma agrária”. Será, aliás, até 1982 investigador responsável no Gabinete de Estudos Rurais da Universidade Católica Portuguesa.

Adere ao PS ainda em 1974 e as circunstâncias político-partidárias levam-no a deputado eleito à Assembleia Constituinte e, depois, ao lugar de secretário de Estado do Comércio Externo no VI Governo provisório chefiado por Pinheiro de Azevedo. “Quando vou para secretário de Estado do Comércio Externo, é uma solução saída da Assembleia”, admite. No I Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, após a vitória do PS nas primeiras eleições legislativas, sobe a ministro do Comércio e Turismo (23/07/1976 a 25/03/1977) que acumulara temporariamente com a pasta da Agricultura e Pescas (05/11/1976 a 23/01/1978).

Cartelização acelerada

Durante mais de um ano procurou mudar a situação. Repôs a autoridade do Estado na ZIRA, libertou terras indevidamente ocupadas, mudou a lei (22/07/1977) e distribuiu ainda “15 propriedades”, uma medida em que foi seguido por Sá Carneiro, líder do PSD, nos poucos meses que foi primeiro-ministro da Aliança Democrática, antes de morrer, que “distribuiu pouco mais de 20”. E reconhece que “depois ninguém aplicou a lei, Sá Carneiro tentou, mas os governos da AD a seguir não. [Com a AD a Agricultura] teve três ministros — Álvaro Barreto, Basílio Horta e Cardoso e Cunha  — e [mudou-se] três vezes a lei e, cada vez mais, no sentido de uma agricultura com base na propriedade privada.”

Hoje, olha para trás e recusa-se a considerar que a reforma agrária, apesar do seu modelo e dos excessos que combateu, não é responsável pela crise e quase morte da agricultura portuguesa após a adesão à Comunidade Económica Europeia.

“O tipo de agricultura de sequeiro e em extensão que se fazia em Portugal estava condenado. O Alentejo não tinha condições para cultura de cereais. Tem para montado e para regadio com o Alqueva. A crise agrícola no Alentejo vinha dos anos 60, perdurou 30 anos. Hoje estamos num período de rejuvenescimento da agricultura em Portugal com um modelo completamente diferente”, argumenta Barreto. Entende que a reforma agrária baseada em UCP e dirigida pelo PCP apenas reproduziu o modelo de agricultura adoptado pelo Estado Novo, esse, sim, o responsável pelo erro de modelo agrícola.

“A produção de cereais era fomentada e subsidiada pelo Estado salazarista. Os preços no Estado Novo para o vinho e os cereais eram tabelados pelo Estado e a política usada penalizava os mais pobres, mas quem produzia mais ficava mais rico, porque tinha mais lucro com o preço tabelado”, sublinha. E conclui: “Aquele modelo morreria de qualquer maneira, mesmo sem reforma agrária.”

Mas há uma herança que atribui à reforma agrária: a da aceleração da cartelização do aparelho de Estado, ou seja, a colocação de militantes partidários no aparelho de Estado e na administração pública. “A cartelização acontece em todo o país, mas no Alentejo é mais rápido. Em Janeiro de 1975, com a criação dos centros regionais da Reforma Agrária, que tinha sede em Lisboa, mas existia nos distritos e nos concelhos, os lugares são preenchidos com funcionários políticos do PCP. Criam um ministério paralelo. Mas o sistema foi extensível à Segurança Social, ao Crédito Agrícola de Emergência, aos bancos, então nacionalizados. A esmagadora maioria eram militantes que eram transferidos dentro do Estado ou entravam na função pública. Foi uma organização minuciosamente montada.”

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