Putin tem medo da chuva

Quer gostemos ou não deles, os presidentes democráticos sabem que quem anda à chuva molha-se.

Para escrever esta crónica tive de ir procurar o nome completo da presidente da Croácia, Kolinda Grabar-Kitarovic. E ao preencher as palavras “presidente d...” no motor de pesquisa da internet reparei que a sugestão automática era logo “...da Croácia”. Ainda antes de “Presidente de Portugal” ou “Presidente dos EUA”. Se bem entendo como funcionam estas coisas, isto quer dizer que à mesma hora milhões de pessoas procuravam o nome da presidente da Croácia.

Tal facto é testemunho da força que tem um acontecimento como uma final de um campeonato mundial de futebol como a de ontem, na qual a França se sagrou campeã por 4-2 contra a Croácia. Ambas as equipas fizeram um percurso extraordinário, a França tornou-se bicampeã com um futebol emocionante, a Croácia foi finalista pela primeira vez com uma incrível capacidade de resistência, nada disso está evidentemente em questão. Mas depois há o mundo para lá do futebol, e nesse mundo não é todos os dias que um país como a Croácia, com quatro milhões de habitantes, está sob os olhares globais como esteve ontem, num campeonato de visibilidade planetária a que a França está mais do que habituada.

Quem viu a alegria dos dois presidentes da república, da França e da Croácia, abraçando cada jogador de ambas as seleções — a sua e a dos adversários — viu também outra coisa. 

A certa altura começou a chover. Muito. E tanto Emmanuel Macron como Kolinda Grabar-Kitarovic ficaram imediatamente encharcados. Só que ali mesmo ao lado estava Vladimir Putin, o presidente da Rússia, que como anfitrião entregava as medalhas aos jogadores, e muito rapidamente se providenciou um chapéu de chuva para proteger Vladimir Putin. A diferença de tratamento entre os presidentes durou um minuto e meio, mas mesmo quando trouxeram chapéus de chuva para Emmanuel Macron e Kolinda Grabar-Kitarovic, estes lá continuaram alegremente encharcados, saindo de debaixo dos guarda-chuvas e abraçando cada um dos jogadores que encharcados estavam também. Putin, por sua vez, cumprimentava cada jogador com um aperto de mão e assim evitava molhar-se com mais contacto humano.

É fácil ceder à tentação de fazer interpretações políticas a partir do futebol. E como é fácil ceder, eu às vezes — confesso — cedo. Uma vez o eurofóbico britânico Nigel Farage disse que “a Bélgica nem é uma nação a sério, é uma criação artificial”. E eu ontem fui recuperar essas declarações, depois de ver a Bélgica derrotar a Inglaterra, e acrescentei: “pois é artificial, mas ganhou dois-zero”. Sei que é pecado, e eu não deveria pecar, mas não resisto.

Agora poderia pecar dizendo que afinal, nesta época em que se diz que “o multiculturalismo falhou”, a equipa da França multicultural funciona e de que maneira. Mas lá está, provando que ter uma realidade multicultural e optar pelo multiculturalismo político não é a mesma coisa, a verdade é que muitos jogadores franceses não disseram só “Vive la France”, disseram sobretudo “Vive la République”. Uma república multicultural embora não multiculturalista, e isso daria pano para mangas — mas não numa crónica sobre futebol. Porque afinal os croatas poderiam também ter ganho, e aí que diríamos nós — que, sendo a Croácia um país tão devoto (a presidente Kolinda Grabar-Kitarovic, que fala português, veio recentemente ao nosso país para ir a Fátima), o catolicismo funciona?

Lá tenho eu então de enfiar a viola das interpretações políticas no saco do “afinal isto é só futebol”. Mas já a chuva, essa, desculpem-me, não é só futebol. Putin organizou um campeonato de futebol impecável para mostrar a eficácia do seu regime. Provavelmente conseguiu-o: ele gosta de se fazer muito mais forte do que os presidentes que estão dependentes do eleitorado. Mas mostrou ontem também outra grande diferença que tem em relação a presidentes de democracias. Quer gostemos ou não deles, os presidentes democráticos sabem que quem anda à chuva molha-se. Já Putin não pode ser visto a arriscar uma molha sem que pressurosamente o isolem da intempérie. Putin tem medo da chuva. Imaginem o medo que não terá da democracia.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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